Ensopado de humanização

[dropcap]D[/dropcap]o poeta holandês Remco Campert perdi todos os livros que tinha, mas ficou-me na cabeça a frase de uma entrevista. À pergunta idiota “Quando é que escreve?”, respondeu “Escrevo quando sinto que não pertenço”. Nessa altura, eu vivia em verdadeira ponte aérea. Lembro-me que ia embarcar para longe e atentei aos quadros electrónicos. Os números digitais estavam sempre a transformar-se noutros números. Os destinos que apareciam logo desapareciam. Pescoços levantados e nervosos a comutar paixões.

Eu já sabia que um aeroporto a nada pertence, não se localiza em lado nenhum, nem propõe uma geografia própria. Todos os aeroportos tendem a ser iguais, nivelando expectativas e longos corredores de vidro para destemperar as angústias. Se a alteração das pulsações começou por definir a lanterna mágica e depois o cinema, hoje os aeroportos ocuparam-lhe essa posição. Em tempos que já lá vão, cada catedral era um aeroporto. No entanto, tal como acontece nos nossos tempos, ninguém tinha a consciência disso.

Por exemplo, no ano 1000 não existia a consciência do ano 1000. Para registar uma data, recorria-se a referências tais como um reinado, um pontificado, a governação de um bispo, ou um ciclo de cobranças (com incidência, por exemplo, no imposto fundiário herdado da fiscalidade romana). Um diploma redigido na cidade de Paris, no ano de 998, foi datado do seguinte modo: “13ª das calendas de Maio, indicção II, 10º ano do reinado de Roberto”. O ano 1000 não pertencia, portanto, às pessoas que viveram nessa época.

Com excepção de alguns membros da igreja que sabiam ler, ninguém fazia a mínima ideia da data que corria. Essa ignorância generalizada explicou a indiferença na altura pelo (que para nós hoje é o) ano mil. Além de que não era comum, nesse tempo, pensar os anos sob a forma de algarismos e ainda menos com uma base comum. A duração ri-se do modo como o acto de contar não passa de uma urgência para crianças a correrem atrás umas das outras, desarvoradas, sem direcção certa, aos gritos e felizes por se sentirem e saberem eternas. Há épocas a que não se regressa. Há épocas a que nunca pertenceremos. Tinha toda a razão Remco Campert.

Talvez fosse por causa do arrojo de Campert que Clarice Lispector gritou deste modo no outro lado do Atlântico: “Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita.”. Essa coisa ensopada é o que nos faz correr sem ter a consciência da corrida. Pertencer por pertencer. A história inventou-nos o ano mil e outros cômputos digitais que nos garantem certas certezas. Por sua vez, os aeroportos e muitos outros interfaces que transpiram sofregamente na rede – sempre, sempre em viagem – inventaram-nos a inocência da geografia, mas continuam a atirar sobre nós as mesmas certezas (ainda que sob a forma de estilhaços em toada de zapping).

O facto é que todos os dias é possível rever os mesmos vultos a rezar na mesma direcção. Reproduzem passos, percorrem alamedas ou algoritmos e recompõem as escadarias do acastelado. Reduplicam rostos nos teclados, agitam polegares e escancaram os longos vazios que destilam em ecrãs que se perdem dentro de outros tantos ecrãs. E a linguagem que usam é a dos aeroportos: igual a si mesma, redonda, por vezes ofensiva e bastante parecida, aliás, com um papel de embrulho untado pela gordura dos hamburgers.

Se eu fosse publicitário começava agora mesmo um “brain storming” com frases nuas e curtas do género “Repetir é sufocar”, “Acreditar é pavimentar o ar” ou “Não pertencer é procurar o ar”. Era preciso que as vogais abertas à O’Neill se vendessem ao preço do ouro, pois o petróleo está a descer nas cotações. Assim houvesse tempo para poder depois gozar dos rendimentos da campanha. Até porque o tempo somos nós e não o ano mil que explode na mostarda das fábulas mundanas. Na minha opinião de publicitário virtual, o poeta Remco Campert ficou para sempre em loop a repetir a frase – “Escrevo quando sinto que não pertenço” – nas ondas hertzianas da rádio “Hilversum Vier”, hoje baptizadas, ao que sei, pelas ondas digitais da “NPO Radio 4”. Afinal o que mais custa é comutar as paixões.

Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 2009 (or. 1964), pp. 158.

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