Nam Kwong | António Graça de Abreu recorda encontro em Macau como membro do PCP-ml

No pós-25 de Abril o Partido Comunista Português marxista-leninista era o único que mantinha relações com a China. Revelamos partes do diário de António Graça de Abreu que relatam a viagem que este fez a Macau, em 1980, para reunir, a mando do partido, com dirigentes da Nam Kwong

 

Macau, 20 de Novembro de 1980

[dropcap]O[/dropcap] Heduíno Gomes (Vilar), ainda como secretário-geral do PCP (m-l), recomendou-me em 1978 que eu, como membro e militante do PCP (m-l) na capital chinesa, quando viesse a Macau, apresentasse cumprimentos aos representantes do Partido Comunista da China em Macau, os camaradas que estavam à frente da companhia Nam Kwong. Era a fachada comercial do forte, mal conhecido pelos portugueses, do poder comunista na terra macaense.

O PCP (m-l), na altura já sem linha política bem definida, começava a estrebuchar. De qualquer modo, eis-me aqui, o ano passado e agora, como o rapazinho lusitano a trabalhar em Pequim na propaganda oficial chinesa, a encontrar os poderosos do PCC em Macau. Bem recebido, eis-me à conversa com um senhor simpatiquíssimo de que só agora, na segunda visita fixei o nome, o camarada O Cheng Peng, o dirigente máximo da Nam Kwong.

O competente intérprete do diálogo foi, de ambas as vezes, um tal senhor Lou Kói, que acabei de saber ser amigo de peito de uns tantos camaradas chineses que comigo trabalham na secção portuguesa das Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Afinal estamos todos ligados.

Desta última vez, foram simples cumprimentos de circunstância, diálogos quase banais, mas fixei uma pergunta sibilina e inteligente que o camarada O Cheng Peng (Ke Chenping em mandarim) me fez. “O que é que acha dos portugueses de Macau?” E eu, tão ignorante, a responder-lhe, patrioticamente, mais ou menos o seguinte:

“Não sei muito sobre os portugueses daqui, mas parecem-me boa gente, vivem bem em Macau, conhecem mal a grande China, mas vão dando o seu contributo para Macau crescer e a cidade é fascinante.”

Nesses anos de 1979 e 1980 eu desconhecia a importância política de O Chen Peng e os entendimentos fundamentais que mantinha com os homens mais poderosos da China. A ligação entre o PCP (m-l) e a companhia Nam Kwong, que se estendia de O Chen Peng a Ma Mankei e a Ho Yin, era feita sobretudo, nas visitas a Macau, por José António Gusmão da Siva, funcionário do PCP (m-l) e, não por acaso, secretário-geral da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa. Nessa altura, a preocupação principal do Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista da China, em Pequim, transmitida aos seus homens de confiança em Macau, era que nenhum português do Partido Comunista Português, de Álvaro Cunhal, ocupasse qualquer cargo de poder em Macau, e também nos governos em Portugal.

O Cheng Peng era natural de Haifeng, na província de Guangdong, e grande amigo do marechal Ye Jianying, nascido em Meixian, um pouco mais a norte, mas no mesmo Guangdong. Ye Jianying, um dos braços direitos de Mao Zedong em tudo o que às coisas da guerra dizia respeito (não nos esqueçamos, como afirmou Mao que “o poder está na ponta da espingarda”), era um velho militar que havia feito a Longa Marcha, chegou a comandante supremo do exército e seria o principal responsável, em 1976, pela prisão e aniquilamento do chamado “Bando dos Quatro”. Durante os tempos mais atribulados da Revolução Cultural, em 1966/1969, O Cheng Peng e Ye Jianying, de Macau para Pequim, de Pequim para Macau, mantiveram permanente contacto. Nesses anos, O Cheng Peng garantiu aos altos dirigentes chineses no poder em Pequim o total apoio do Partido, em Macau, no caso de ser necessário ajudar quadros superiores do PCC, se fossem perseguidos pelas hostes radicais maoistas. Macau podia ser o lugar de saída da China, ou de refúgio clandestino desses quadros, incluindo o próprio marechal.

Estes dois homens haviam-se conhecido em Hong Kong no início dos anos 40 do século passado. Ye Jianying, fugido então às perseguições dos nacionalistas de Chiang Kai-shek, fez várias visitas a Macau, conhecia a cidade desde 1943. Para além de opções políticas e entendimentos do mundo aparentemente semelhantes, algo muito forte e poderoso unia O Cheng Peng e o marechal Ye Jiangying. Falavam o mesmo dialecto e eram ambos da etnia hakka.

Para que este encontro acontecesse, António Graça de Abreu contou com o apoio do advogado Jorge Neto Valente, que já na altura contava com 10 anos de Macau. “Ele era advogado e tinha as suas ligações. Fiquei em casa dele e ajudou-me bastante”, confessa o agora tradutor e professor universitário que nunca viveu em Macau. No período do pós-25 de Abril, “Neto Valente também era amigo do Heduíno Gomes (Vilar)”.

“Disse-me: ‘vai falar com estes tipos’, e era preciso eu fazer isso porque tinha recebido ordens do PCP-ml para fazer o contacto.”

Quando visitou Macau, António Graça de Abreu nada sabia sobre o território, pois vinha directamente de Pequim, onde trabalhava, desde 1977, nas Edições Estrangeiras, além de dar aulas de português.

“A partir de 1976 andava próximo do PCP-ml. Em 1975 o Heduíno Gomes (Vilar) foi à China e os chineses pediram ao PCP-ml pessoas para trabalharem em Pequim, e eu fui”, recordou Graça Abreu, para quem o maoísmo deixou de fazer sentido pouco tempo depois.

O encontro com a Nam Kwong fez António Graça de Abreu perceber o mundo em que se encontrava. “Havia ligações muito fortes entre estas pessoas [da Nam Kwong] e figuras de Macau como o senhor Ho Yin ou Ma Man Kei. O Cheng Peng mandava mais do que todos os outros porque tinha as relações todas com Pequim.

Apercebi-me disso. Os portugueses praticamente não entravam dentro desta área”, rematou. À época, a Nam Kwong “tinha uma fachada comercial, a ideia era apostar na importação e exportação”. Mas, na prática, “eram eles que controlavam Macau e a comunidade chinesa”.

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