O antepassado de Fernando Pessoa

[dropcap]S[/dropcap]ancho Pessoa, que viveu no século XVI em Lisboa, foi antepassado de Fernando Pessoa e era judeu. Devido à actuação feroz da Inquisição, acabou por converter-se ao cristianismo, sem deixar as práticas judaicas e a ligação ao seu povo. Era cristão para fora e judeu para dentro. Deixou um texto em prosa, «A Grande Mortandade», que data de 1698, que sempre foi mais um segredo do que um livro.

Consta-se que há uma publicação, cuja data também não se sabe, talvez em inícios do século XIX ou finais do século XVIII, mas não é certo e de qualquer modo, a ter existido, terá sido numa pequena edição, que acabou rapidamente por desaparecer. O texto, que é uma espécie de crónica e ensaio, e foi agora editado numa edição crítica de Marco Dante, começa assim: «A primeira grande mortandade de judeus ocorreu com as cruzadas. Independentemente de a origem da chacina ter sido incitada pelo Papa Urbano II, contra os sarracenos [o modo como eram chamados então os muçulmanos], os seguidores de Paulo e de Jesus chacinaram todos os que não eram por eles. Na cidade viviam judeus e sarracenos, em paz. Em paz também viviam pela Europa fora judeus, que foram sendo dizimados pelos cruzados, ao longo dos cinco mil quilómetros até Jerusalém. Mataram crianças, mulheres, velhos. Comeram-lhes a carne. As crianças eram colocadas em espetos e assadas no fogo, como se de animais de caça se tratasse; fatiados e comidos. Os mais velhos eram cozinhados em grandes panelas, durante horas, até que a carne amaciasse e pudesse ser comida. O medo pelos bárbaros do Norte espalhou-se como se espalhava a cólera. A crueldade era uma arma poderosa e eficaz. Os seguidores de Paulo e de Jesus eram terrivelmente cruéis e foi com essa crueldade que tomaram a cidade de Jerusalém, chacinando todas as almas que aí viviam, quer fossem sarracenos, quer fossem judeus, quer estivessem vivos e habitassem Jerusalém. Nunca tamanha violência tinha sido registada no mundo dos homens. Ainda hoje, a palavra cruzadas faz estremecer os povos desses lugares.» Como se pode ver, pelo começo, tratava-se de um texto que pretendia preservar a memória das cruzadas de um ponto de vista oposto ao da divulgação católica e, por isso mesmo, não tinha pretensões de ser publicado. Circulava em meios muito restritos e em segredo. Foi passando de gerações em gerações, como os próprios textos judaicos, longe da luz do dia.

Fernando Pessoa refere este seu antepassado, mas nunca refere o texto. Não o conhecia? É muito improvável que não o conhecesse, tendo Fernando Pessoa tanto interesse nos assuntos religiosos em geral e nos judaicos em particular. Podemos pensar em duas possibilidades, para essa não menção do texto do seu antepassado: 1) pensar que prejudicaria a sua obra, pois Portugal era ainda profundamente católico; 2) pensar que o texto deveria manter-se em segredo, passando apenas entre amigos e familiares. Não é difícil aceitar esta segunda hipótese, até porque o segredo era algo que fascinava Pessoa. Há ainda uma terceira hipótese, que é adiantada por Marco Dante, na introdução à edição do livro, que diz: «Fernando Pessoa nunca mencionou “A Grande Mortandade” [embora tenha mencionado o antepassado que o escreveu] porque nunca chegou a ler o texto, embora soubesse da sua existência e do seu conteúdo.» Esta posição de Marco Dante é alicerçada numa carta encontrada recentemente, em casa de um familiar de Pessoa, em que este escrevia a um primo o seguinte: «Não sabes como possa ler “A Grande Mortandade”?» E continua Dante: «Ora, a carta tem a data de 22 de Maio de 1931, o que mostra claramente que a 4 anos da sua morte, o poeta ainda não tinha lido o texto do seu antepassado. A partir daí não se sabe. Não se sabe sequer qual foi a resposta desse primo a Fernando Pessoa.»

Mas tendo em conta que o poeta encenou toda a sua obra, não nos custa a crer que essa carta tenha sido mais uma encenação. Não custa pensar que, na realidade, Pessoa tenha tido acesso ao texto e essa pergunta ao primo apareça propositadamente como uma pista errada para o futuro. Seja como for, e embora talvez não seja irrelevante, a verdade é que o texto de Sancho Pessoa existe e era conhecido em segredo por amigos e familiares e dava testemunho de uma atrocidade monumental, que tinha sido completamente «branqueada» ao longo dos séculos. Numa passagem do texto, Sancho escreve: «Talvez um dia se possa ver a verdade.

Mas não está ao nosso alcance poder saber quando é que a Europa será libertada.» Ou ainda: «A tirania do catolicismo não deixa ver.» Havia uma clara noção de que a Europa tinha sido sequestrada por uma ideologia, por uma tirania: «César foi substituído pelo Papa.» É, no fundo, um texto de liberdade. Um texto que em certo sentido é fruto do iluminismo europeu. E não deixa de ser um mistério a não referência ao mesmo por parte do seu descendente mais ilustre, Fernando Pessoa.

Cabe a nós, leitores, trazer à luz do dia o texto desse antepassado do mais ilustre poeta português. Marco Dante, ainda ano seu prefácio, escreve: «A prosa de Sancho Pessoa é tão vigorosa, contundente e clara, que mesmo hoje as suas palavras não deixam de fazer estremecer o leitor.» E hoje é o tempo em que devemos lê-lo novamente. Ler contra a mortandade, seja ela qual for. Ler contra a ideologia, as ideologias.

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sergio
sergio
10 Jul 2020 23:11

Antepassados, sempre histórias a contar..

Ana Elizabeth de Mendonça
Ana Elizabeth de Mendonça
11 Jan 2021 22:25

Catolicismo:a maior e mais longa tirania vivida pela humanidade. !