Vitorino Nemésio

[dropcap]O[/dropcap] nosso drama e simultaneamente o que nos excita na linguagem é que ela não é transparente. O que é então possível fazer com a linguagem? Dançar. É o que a poesia propõe, organizar danças de salão com as palavras, que ainda por cima, como quem não quer a coisa, muitas vezes dizem a verdade, a verdade que de forma directa leva os homens a ficarem de costas uns para os outros… Mas a poesia consegue pô-los face a face – é o seu dom.

Na minha adolescência havia um homem que riu galhofeiro ao meu lado, num filme que por um acaso feliz vimos juntos, e que conseguia fazer dançar as palavras de uma forma admirável. Chamava-se Vitorino Nemésio.

Tinha o Nemésio um neto que pelo meu quinto ano do liceu andou na minha turma e
por quem nutri uma daquelas amizades repentinas e intensas, mas inconsequentes, pois deixámos de nos ver, assim que ele foi para ciências e eu para as artes.

Porém, privámos durante um Verão, eu vivia em Almada e ele na Cova da Piedade, que está colada, e havia uma singularidade na casa dele que a tornava particularmente atractiva: a varanda das traseiras dava para um recinto onde uma sociedade recreativa tinha o seu cinema ao ar livre.

Assim gozámos algumas fitas de borla e calhou acompanhar-nos ocasionalmente nessa folia o Vitorino Nemésio. Lembro-me vagamente (neste caso não sei se sonhei) de termos visto juntos uma coboiada, O Ouro de Mackena, onde o poeta, taciturno, cabeceava, e com razão, é fita que não resistiu ao tempo, e tenho mais presente um impensável Jerry Ama-Seca, que fazia o Nemésio dobrar-se de riso na varanda e contagiar-nos com o seu entusiasmo.

A dado momento o Jerry Lewis, um desastrado arranjador de televisões, canta pensando na namoradinha da sua adolescência, que abandonara a vilória para ir para Hollywood e seguir o seu sonho de ser actriz. Jerry canta e imagina que ela se lhe declara, I love you, I love you… ao que se seguem estes dois versos: “Quando você sonha/ o amor é uma coisa solitária”. E aí vimos, na varanda, aquela figura solene levantar-se de um salto e gritar espontaneamente Admirável, e o filme ficou suspenso ali enquanto o Nemésio nos procurava explicar a surpreendente profundidade da letra da canção, repetindo os dois versos que o fascinaram. Depois foi buscar uma viola e improvisou uma modinha a partir desses dois versos.

Nunca mais o vi mas a simpatia daquele contacto levou-me depois a ler com gosto a sua obra, sobretudo a poesia, onde encontramos inúmeros filões poéticos, formas e estilos. Nemésio renovou-se sempre e com tal pujança que em 1972, com Limite de Idade, tinha então 71 anos, ou em 76, com Sapateia Açoriana e Andamento Holandês, escreve dois livros que ainda hoje são exemplos de uma fecunda adequação do artista com a sua contemporaneidade. No caso do Limite de Idade inoculando nos versos os termos e a linguagem da ciência, interesse que mais tarde se manifestaria num surpreendente Era do Átomo, Crise do homem (1976) e no qual Nemésio interpelava a ciência e os seus efeitos no momento de crise que então se vivia, em plena Guerra Fria. E às duas por três escreve:

«Mas se a Ciência se quis como detentora das chaves de um Universo não demiúrgico – sistema de relações de elementos inanimados numa coesão regida por leis naturais imanentes -, a Técnica, embora positivista como ela, teve que tomar o lugar vago do demiurgo, tornar-se feiticeiro, operar, urgir. Porque Técnica, afinal, é urgência, no duplo sentido de intervenção, e pressa. Cirurgia, Metalurgia, Siderurgia – tudo urge, tudo é urgente. Nós é que não reparamos que os elementos das palavras significam sempre basilarmente o mesmo onde quer que se encontrem. […]»

É engraçado como há 40 anos Nemésio já detectava esta propensão da tecnologia a tomar para nós o lugar do feiticeiro, da magia.

A sua versatilidade como a sua capacidade para renovar-se ao longo de quarenta anos de poesia, inclusive, atrasou-me a descoberta de Pessoa, que para mim não foi uma novidade tão grande porque o Nemésio, sem o artifício dos heterónimos, já me oferecia os meandros de um arquipélago.

Talvez este confinamento fosse a oportunidade para redescobrir o Nemésio, que anda tolamente esquecido.
Do poeta transcrevo o delicioso exercício em francês (o Vitorino já publicara um livro em francês nos anos trinta) com que abre Limite de Idade:

«CUISINE CHINOISE: Les savants se rencontrent dans les mots/ Les pauvres se partagent les os./ Les matelots se sauvent sur les eaux./ Les hommes se cachent leurs grelots/ À fin qu’on ne les prenne pour des sots./ Les poètes se grisent de mots,/ De peur qu’on ne les écorchent:/ Sauvons la peau,/ Porche/ De l’ADN,/ Car notre aubaine/ est le poteau,/ Dernier cri des robots.» , e outro poema « autobiográfico » : «JÚPITER,1901/ Nasci no ano em que se descobriu a Grande Perturbação de Júpiter./ Minha Mãe não deu por nada, meu Pai não era astrónomo, / Mas houve lá em casa uma grande perturbação na água do banho/ Que meu Pai, músico, acompanhava regulando encantado o seu metrónomo./ E, Júpiter, assim mimado, com pai por ele, saiu poeta,/ Com seus doze satélites, quatro deles principais:/ Serafina, Lourdes, Lídia, Isaura,/ A Primeira Grande Perturbação de Júpiter/ No ano em que nasci. / Elas em roda da banheira,/ Meu pai tocando flauta/ (Serpentes? No ninho em mim)/

E um véu de vapor de água, / Difracção de satélites…// Júpiter! Júpiter/ tu és o Toiro de fumo/ que nunca terás Europa.»

E despeço-me confessando que no meu delírio, li no primeiro poema: Salvemos a pele/ Porsche/ do ADN, e só à segunda vi que faltava um s na palavra e que, portanto, será: Salvemos a pele/ Alpendre/ Do ADN. Falta-me é o jeito para a viola.

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