“Como Henry Miller e Jack Kerouac nunca se conheceram!” [1987]

[dropcap]C[/dropcap]omo Kerouac, aprendi a falar francês antes de inglês e, também como ele, fui um católico falhado. No caso de Kerouac, pode-se dizer que foi um católico falhado transformado em budista.

Associei-me aos escritores Beat publicando-os. No início, eu não era membro da Geração Beat. Não os conheci na Universidade de Columbia ou em Nova Iorque, na década de 1940. Quando Allen estava no Colégio Columbia, em Nova Iorque, e pessoas como Burroughs e Corso estavam talvez em Times Square ou em qualquer outro lugar, eu morava em França com uma família francesa e ia para a Sorbonne. À época, não conhecia nenhum Americano e certamente nunca tinha ouvido falar de poetas Beat. Isso só aconteceu quando cheguei a São Francisco e abri a livraria City Lights com um amigo, em 1953. Os poetas reúnem-se naturalmente em livrarias e, mais cedo ou mais tarde, os poetas, os escritores Beat nova-iorquinos chegaram à City Lights. Foi assim que os conheci e que comecei a publicá-los. Primeiro foram Allen Ginsberg, Gregory Corso, Kenneth Rexroth (que não foi um membro da geração Beat; foi uma espécie de pater familias em São Francisco. Ele foi a mais importante figura tutelar de todos os poetas de São Francisco naqueles anos).

Limitar-me-ei então à curta experiência que tive com o Jack. Não foi muito profunda – não o conheci muito bem. (Se soubesse que ele seria tão famoso, teria estado mais atento!) Conforme se conta nas várias biografias de Jack, foi apenas na Costa Oeste, e desde que vim para São Francisco, que os nossos caminhos se cruzaram. Por volta de 1960-61, reuni-me com o Jack e ele entregou-me o manuscrito de O Livro dos Sonhos. Fiz uma selecção, que é a que consta na edição publicada pela City Lights e que teve muitas reimpressões. Anos mais tarde, Ann Charters compilou um conjunto dos seus Poemas Dispersos, que está também publicado na City Lights. É dessa altura, do início dos anos 1960, quando O Livro dos Sonhos saiu, o meu primeiro contacto real com o Jack. Depois ele veio para oeste, basicamente para sair de Nova Iorque e para não beber tanto. A ideia era que ele chegasse ao aeroporto de São Francisco, no sul da cidade; eu deveria apanhá-lo lá e levá-lo directamente para sul, para a minha cabana em Big Sur, de modo a que ele não se envolvesse demasiado na cidade, a ponto de ser sugado para um qualquer bar, onde encontraria velhos amigos e começaria a beber. Aguardava então pelo seu telefonema na livraria, na City Lights, esperei várias horas até que, finalmente, há este ligeiro alvoroço. Ouço dizer que o Jack está na porta ao lado, no bar Vesúvio. Claro que se cruzara lá com velhos companheiros, mas estava combinado que, naquela noite, jantaríamos em Big Sur com o Henry Miller.

De onde vivia, em Partington Ridge, Miller iria de carro até à costa, até Carmel Highlands, até à casa de um amigo chamado Effron Doner. Nós desceríamos até à costa, encontrando-nos para jantar. Bem, eram cerca de duas ou três horas da tarde e o Jack ainda estava a beber no bar ao lado, quando disse: “Bom, quanto tempo levamos até lá?” “Bem, são umas três horas de carro, Jack.” Então ele disse: “Temos muito tempo!”

Num instante, são quatro horas e ele ainda bebe. São cinco horas e Jack diz: “Bem, vamos lá abaixo ligar, dizer-lhes que estamos um pouco atrasados”. Ligámos então às cinco horas e dissemos: “Só para dizer que estamos a sair agora, estaremos aí pelas oito, com certeza”. Isto continuou e, por volta das seis horas, ligámos novamente e dissemos: “Vamos sair agora”. Às sete, ainda andávamos pelo Vesúvio e telefonámos para dizer: “Está tudo bem? Podemos pôr-nos aí em duas horas; seja como for, indo na gáspea, estaremos aí pelas dez”. Enfim, acabei por desistir da ideia e o Jack nunca saiu do bar. De qualquer modo, parti, desci sozinho para Big Sur e fui para a minha cabana, bastante isolada naquilo que é ainda um desfiladeiro selvagem, sem electricidade. Por volta das três da manhã, o Jack chega de táxi. Segundo sei, vem num desde São Francisco, que fica a cerca de 150 milhas, e chega ao campo. O táxi só poderia ir tão longe nesta estrada de terra. O Jack começou a andar a pé para encontrar a minha cabana por volta das três da manhã.

Não sei que horas eram; com a sua lanterna de guarda-freio nas linhas férreas, arrastou-se pelo prado tentando dar com a minha cabana. Bem, nunca a encontrou. Na manhã seguinte, fomos dar com ele desfalecido no prado. Dormia no prado aberto, com a lanterna ao lado. Tanto quanto sei, nunca conheceu Miller depois disso. Miller estava fortemente atraído pela escrita do Jack. Se pararmos para pensar, há muitos aspectos de Kerouac, alguns dos mesmos temas, que cativaram Miller verdadeiramente: a canção da estrada larga, uma imensa joie de vivre. Miller tinha esse entusiasmo pela vida, que era realmente a sua marca registada. O apelo do topo da montanha, o desejo de o alcançar; em Henry Miller, até uma ligeira atracção pelo Budismo, acreditem ou não. Também é possível comparar o Pela Estrada Fora, de Jack, com o Pesadelo de Ar Condicionado, de Miller. Sempre realista, Miller estava realmente cativado. Creio que mais do que qualquer outro dos livros de Jack, Os Vagabundos da Verdade foi o que mais o entusiasmou.

Um aspecto mais. Quando se fala de Kerouac, refere-se amiúde Thomas Wolfe. E essa foi uma das principais empatias que tive com o Jack, uma afinidade com Thomas Wolfe. Eu próprio tinha estudado na Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill, porque Thomas Wolfe tinha ido para lá. Chamava-se Pulpit Hill, em Look Homeward Angel, de Thomas Wolfe, e por isso tive esse grande amor, especialmente por Look Homeward Angel, que era o livro de Wolfe de que o Jack mais gostava. Comecei a pensar na visão que Thomas Wolfe tinha da América. Era muito parecida com a visão da América tida pelo Jack. Acho que, actualmente, há um enorme ressurgimento do interesse em Kerouac, pelo menos nos Estados Unidos. Há uma nostalgia por uma América que foi realmente destruída. Uma América que agora existe apenas nas pequenas, destruídas estações rodoviárias Greyhound, nas abandonadas e poeirentas cidades dos arredores. Era uma visão arrebatadora da América que, no caso do herói de Thomas Wolfe, Eugene Gant, foi vista da janela de um comboio de alta velocidade. Em Kerouac, a visão foi a mesma, só que a partir da janela de um carro em movimento…

tradução de:
“How Henry Miller and Jack Kerouac never met!”
in Un Homme Grand – Jack Kerouac at the Crossroads of Many Cultures (eds. Pierre Anctil, Louis Dupont, Rémi Ferland e Eric Waddell), Carleton University Press, Ottawa, 1990, pp. 69-72

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