Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDia quinze da quarentena António Cabrita - 26 Mar 2020 [dropcap]N[/dropcap]ada tenho a acrescentar ao que li numa entrevista de Juan Eslava Gálan, ao ABC: «Vivemos hoje uma experiência histórica excepcional. Quando tudo isto passar, o que acontecerá, acho que seria bastante inteligente para a Humanidade – a começar por aqueles que a governam – considerar que nem tudo vale e que talvez a natureza esteja clamando para que mudemos as nossas vidas. Além de mudanças climáticas, existem muitos sinais que nos vão sendo endereçados e há que mudar de comportamentos se pretendemos continuar a ser viáveis como espécie». Escrevo na madrugada de segunda, dia 25, depois de ter sido declarado o primeiro caso de um infectado com corona na favela Cidade de Deus, do Rio. O rasto que esta brasa deixar na favela permitirá adivinhar o que podemos esperar nas periferias de Maputo. Tanto vai depender do comportamento destes barris de pólvora. Como alguns privilegiados, vou “exilar-me” numa península perto do mar e sem vizinhos. É uma ilusão, mas a possível em país com vinte ventiladores hospitalares. Em vez de ouvir falar do corona vírus, ouvir o mar: outra das motivações deste meu refúgio. Mas aqui vos deixo o poema possível, nestes dias do luto: DIA QUINZE DA QUARENTENA As imagens de drone confirmam o vírus unhou o silêncio e o riso, nas ruas da cidade embutem-se enxames de pálpebras roxas, dolentes, num sonho de corais. Ao décimo quarto dia de quarentena é lícito concluir: és mais difusa do que as estrelas e como o coração se deslassou no skipe, aonde a mentira esquece que caminha sobre andas. Foram os amantes de ocasião os primeiros a ceder neste transe em que o inimigo é o outro. Porfia a beleza, mas quem a admite isolada numa caldeira sem árvores? Depois do século ter emudecido os sinos, assistimos à repentina invisibilidade dos aviões, temerosos que até dos espelhos possamos desertar. Só os cães abandonados reaprendem a uivar. Chafurdámos até aos bordos na medula do consumo e volvemos retraídos bichos-de-conta em cujas retinas um raio tatuou os caninos da maldita. Como se fora novidade, a morte, como se morrer não fosse restituir um dente à gengiva nua, o reverso da alma que arrogámos imortal. Tudo invenções que urdimos: o amor, a dignidade, o lustroso pêlo da liberdade que com felina e orgulhosa determinação escovámos – e de que agora cogitamos abrir mão, pelo indulto de que o vírus não nos vele o pulmão com o seu kilt. Balimos de medo como a virgem arrastada para o negrume da caserna, bloqueados, à mercê. O que me espanta nesta crise é a obsessão de imaginar que a nossa morte possa sagrar o fim do mundo, a velocidade com que o medo particular se tornou global. Segurança ou morte: o novo mandamento, a vizinha que adorava hortênsias há vinte dias que não as rega e repete merda para as hortências, merda, e algures a vida tremula distante como um placebo à cata de interruptor: quem por último ficar que apague a luz, dirá o último homem, cego ao sem sentido do que diz. Mas as imagens de drone confirmam: nunca o medo teve tanto marketing, nunca o homem foi tão oco. As pessoas relacionam-se como fantasmas com cordilheiras de permeio, desairoso velório dos perfumes. Era tremenda a energia nestas avenidas e agora sorumbáticas desplumam-se em nome duma responsabilidade que antes nunca exibiram. Embora coisas positivas, tremendas, re-activem a esperança: aos canais de Veneza voltaram peixes, há finalmente um sentimento de que as soluções têm de ser globais e de que não há milionário impermeável ao coração da maleita – de má postura no retrato ninguém se livra! Sete da manhã, saio nesta deserta hora para um passeio à Catedral. Ao fim de tantos dias duma seca taciturnidade, desta travessia a vau entre os gentios, apetece-me ver vitrais, sentir a sós (porque o templo vai estar vazio de beatas e de inúteis preces) como a colatura daquela luz me banha a pele e me filtra o sigilo. Anima-me estar calado diante da investidura duma transparência que me tome como cúmplice e não como seu observador acidental. Há catorze dias que não saio de casa, apetece-me aquele silêncio húmido, penumbroso, uma cunha entre a reverência acéfala e o respeito dos ateus, uma medida sem ruído. Assusta-me mais a tenacidade de quem vê que a beleza persiste mas resiste a plantar a semente na caldeira sem árvores. Voltemos ao terceto, Dante – afinal, duas rodas de bicicleta e um selim: que triste voltou a ser o nosso tempo.