Cristalinos e intricados

[dropcap]N[/dropcap]ão gosto de generalizar, mas por vezes apetece. Facilita a percepção do território, torna mais visíveis os seus limites e define melhor a luz com que invadimos os temas a abordar. Na maior parte das vezes, prefiro ser indutivo nas análises, ainda que a senda de particularizar em demasia conduza ao apagamento de horizontes. Então, o texto – ou a voz – desdobra-se e fá-lo sem a preocupação de um sentido óbvio imediato ou, pelo menos, claro.

O ensaísmo oriundo do mundo anglo-saxónico pertence ao primeiro dos caminhos: clarifica o terreno, estrutura o campo de visão e convida a organizar o olhar. Lemos a divisão dos saberes proposta por Locke, a alegoria da liberdade proposta por Hobbes ou a sequência temática dos ‘Ensaios’ de Francis Bacon e tudo é cristalino.  Entramos nas obras de Harold Bloom, Richard Rorty ou do (oxfordiano) Isaiah Berlin e capta-se imediatamente um esquema de fundo que permite situar o espaço na sua totalidade. Depois a digressão, que pode assumir características chãs e até descentradas, torna-se clarividente e flui particularmente bem.

Já o ensaísmo latino prefere enredamentos: avança com a gula críptica que advém do prazer da palavra e dos seus ecos e, no entanto, galvaniza, contagia, impõe-se pelo eclectismo. Entre Montaigne, Barthes ou Magris sente-se esse tremor da natureza, ou essa inquietação, de que nem sempre se deduz uma matéria óbvia. No seu ‘Ensaio sobre a origem da linguagem’ (1772), Herder escreveu: “os filósofos franceses misturam tudo o que diz respeito a algumas curiosidades aparentes das naturezas animal e humana”. A verdade é que também não existe fascínio sem esse tipo de cocktail e de incompletude. Já se sabe que a mini-saia discursiva é sempre bem mais atraente do que uma saia vitoriana até à flor dos artelhos.

A chamada disposição cartesiana não foge a este espírito ecléctico. Ela é comparável às áleas geométricas dos jardins franceses de seiscentos que vivem sobretudo do aparato visual e da formalidade teatral. Nas suas ‘Lettres Philosophiques’, Voltaire realçou a fértil imaginação de Descartes, chegando a referir que “a natureza fez dele um poeta”, facto que nunca conseguiu dissimular, nem “mesmo nas obras filosóficas onde se vêem a todo o momento comparações engenhosas e brilhantes”. Leibniz apontou o excesso de “hipóteses imaginárias” à física cartesiana, enquanto o holandês Huyghens, autor de uma autobiografia que destacou os avanços ópticos do seu tempo, a comparou a um mero “ensino de quimeras”. O engenho e a reverberação poética a sobreporem-se à linearidade dos canteiros.

Não é por acaso que o mal amado Deleuze destacou em vários dos seus livros a “superioridade” da literatura anglo-saxónica devido à sua vocação para uma espacialidade livre e não sujeita a freios ou a aparatos formais, dando como exemplos, entre outros, Melville, Stevenson, Wolfe, Fitzgerald, James, Lovecraft, Miller, Kerouac, Lawrence ou Virginia Woolf. Por outro lado, não deixou de relegar o imaginário da tradição francesa para o imobilismo, para a previsibilidade e para a extrema centralidade dos seus cenários. Por outras palavras: a cinética a devorar literalmente a inércia.

Esta diferença entre a errância e a determinação é a mesma distância que separa o nómada do sedentário. O primeiro cria um guião para a sua viagem, mas fá-lo em movimento. O segundo encerra todas as viagens no seu habitat projectando o globo num jardim, cujo labirinto se fecha a si próprio. A sobrevivência do primeiro obriga a uma cartografia que deverá ser compreendida com exactidão por terceiros, enquanto a sobrevivência do segundo se bastará aos mais íntimos sortilégios da poética.

Se este é, em suma, o descaminho que afasta o tradicional verbete anglo-saxónico do enredamento latino, não esqueçamos nunca as excepções que muitas vezes ditam aquilo que o mundo afinal é (verdadeiras flechas prontas a arrasar conclusões imprudentes). Não é por acaso que todo o actual discurso do Brexit – mesmo no caudal pós-eleitoral – é a peçonha mais nevoenta que já se viu. Qual dedução, qual indução, qual poética, qual quê! Aquilo é um misto de brumosa apologia com pés de cabra, de insularidade papalva, de contrição trombuda, de ‘cala consente’ sem norte, enfim: um verdadeiro estiolar do que ainda restaria das ossadas da velha ‘Britannia’. Que nos valham figurões como Peter Sellers, John Cleese ou Rowan Atkinson para nos contagiar a rir de toda esta charada. Pois eles é que são a única e verdadeira vaga imperial anti-Brexit.

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