O crente

[dropcap]N[/dropcap]ão precisa fazer sentido, aliás, apenas funciona sem cabimento, desprovida de razoabilidade. A fé continua a dominar os homens, nas suas instâncias mais primárias, nos recessos da condição humana, substituindo a luz nos recantos mais escuros onde nem um raio de razão brilha.

Na ausência de resposta, o crente não se contenta com a digna e edificante ignorância, com o ponto de partida. O conhecimento virá de cima e de forma imediata, a rendição total é o preço a pagar. A ideologia funciona através de mecanismos semelhantes. Fundada em asserções sobre o indivíduo, o grupo social, o mundo e o além, a ideologia é um corpo musculado por doutrinas orientadoras. Tal como a sua mística irmã, a fé, os ideários políticos impõem-se de cima para baixo, numa verticalidade esmagadora da razão e do bom-senso, na aniquilação da máxima de Descartes “penso, logo existo”. Neste domínio, “sigo, logo existo” é a essência do crente e do ideólogo. A subjugação às palavras do líder funda a sua existência.

Até o homem mais temperado, sob a influência alucinogénica da ideologia acredita nas mais bárbaras monstruosidades. Precisa delas, precisa do sentimento de pertença a algo maior que si. Precisa da redenção gnóstica dos crentes.

Ambas as irmãs (fé e ideologia) actuam perversamente no mais belo e inexplorado enigma que a natureza nos ofereceu: a consciência. Algo que está muito para além da compreensão, que seduz os místicos, que confunde a ciência e que é um empecilho aos líderes espirituais e políticos.

Só com fervoroso dogma se pode acreditar nas mais estapafúrdias teorias, um intoxicante tão poderoso ao ponto de mascarar a mais óbvia e assumida propaganda numa verdade inabalável.
Hoje não quero sujar as mãos nesse lodaçal que é a política local/regional, mas apenas dirigir-me aos factores entorpecedores da razão que poluem os nossos dias.

A polarização política chegou a um ponto tão extremo que as intenções e acções de grupos antagónicos se confundem em alianças magnéticas, como dois imãs esquizofrénicos que se abraçam repudiando-se ao mesmo tempo.

Sem nuance de teatralização política, vemos teorias de neonazis que lutam por representação democrática, teses de comunistas que defendem com unhas e dentes cartelizações capitalistas rebentando recordes de pequena-burguesia, moderados a salivar por infinitas penas de morte por infrações de trânsito, pacifistas a encher os bolsos nos mercados do armamento pesado, vampiros a limpar o sangue dos queixos enquanto gritam slogans vegans.

O mundo virou-se de pantanas e a crença voltou a predominar lançando-nos, outra vez, para uma idade de trevas. Nada de bom pode surgir daqui, apenas ganância desmedida, sangue e morte. Até chegarmos a um novo iluminismo, será feita farinha dos ossos esmagados dos mais pequenos. Nada sobreviverá à autofagia deste monstro místico de duas cabeças. Polos sul e norte magnéticos unidos num abraço homicida/suicida.

Este é o fruto da era da ultra-ideologia, a atracção entre extremos e a asfixia de tudo o que está no meio.
A minha postura hoje é de niilista contemplação. Que se esmaguem, “que esta quilha rompa e me engula o oceano”, que ateiem todos os fogos e nos sepultem em mil sarcófagos de estrelas. Sinceramente, não me interessa. Se não posso viver em verdade, viverei feliz em alucinação, livre de amarras, sem dogmas ou crenças a ditar sabedoria suprema ou pertença tribal.

Se querem acreditar no que vos dizem, força nisso, fiem-se na supremacia da vossa verdade, na superioridade do dogma que habita debaixo da vossa pele, no mundo bipolar do irmão Karamazov caído em desgraça porque na ausência de Deus tudo é permitido. Vivam nesse sistema binário de 0s e 1s, preto e branco, norte e sul e multipliquem-se na demência de serem 0 e 1 ao mesmo tempo.

Por mim, tudo bem. Mas façam-me um favor: poupem-me a evangelizações, projeções absurdas e limpezas encefálicas. Há muito que deixaram de ter piada.

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