h | Artes, Letras e IdeiasSíntese passiva III António de Castro Caeiro - 3 Jan 2020 [dropcap]O[/dropcap]s manuscritos de investigação (“Forschungsmanuskripte”) de Husserl constituem a esmagadora maioria do seu legado filosófico à humanidade. O que publicou durante a sua vida, é a ponta do Iceberg da sua actividade produtiva. Husserl pensava a escrever. Escrevia em estenografia, uma forma de escrita rápida, taquigrafia, que procurava acompanhar a rapidez do pensamento com a “pena”. Escrevia tanto que uma das incumbências dos seus assistentes era o de encontrar no meio dos papéis o que tinha escrito sobre os temas recorrerentes: “tempo”, “redução”, “filosofia”, “mundo da vida”, “experiência”, “vivência”, etc. Quando os escritos são levados para Louvaina, é preciso um camião para os levar. Se pensarmos que em cada página escrita em estenografia estão muitas páginas em escrita normal e por maioria de razão muitas mais páginas impressas, não é difícil de compreender porque razão ainda hoje, volvidos mais de 80 anos após a sua morte, os escritos de Husserl estão ainda a ser publicados. Neles encontramos muitas páginas, em que Husserl procura fazer o acompanhamento dos momentos de transição entre estados de consciência descontínuos. A tentativa deste acompanhamento é artificial à primeira vista. Pelo menos, requer que se monte um aparato teórico. Tentemos perceber o que está envolvido nesta tentativa de acompanhamento, em que se procura dar conta ou perceber o que acontece quando se passa de um momento de consciência X para um momento de consciência Y. X vem depois de W. Y antecipa Z. W, X, Y, Z são momentos da consciência que podem ser apreendidos num ápice, num instante, num só momento de tempo, num flash! E, contudo, nessa cristalização que fixa, congela e paralisa, o conteúdo fixado, congelado e paralisado é uma sequência: X, Y em que X e Z estão esbatidos mas estão anexados ou mantidos em associação de algum modo, como Husserl diz tecnicamente: Y retém ainda e mantém anexado X. X associa, faz lembrar, cria o prospecto de Y. X e Y, na verdade qualquer momento de tempo isolado tem esta possibilidade relacional constitutiva, não é uma substância. É uma relação “pros ti”, como Simplício bem viu com olhar clínico em Aristóteles. Isto é, todo e qualquer instante no tempo não é nem em si nem absoluto (absolvido do anterior e do ulterior, por exemplo, não será nunca, porque seria sem antes e sem depois). Qualquer instante é sempre constituído por relação com o anterior que foi mesmo há pouco mas não é já e com o seguinte que não é ainda. Todo e qualquer instante é um istmo entre duas negatividades, duas negações da realidade: o passado que, por mais breve que tenha sido a sua cessação não é já e um futuro que por mais iminente que seja, não é ainda. O que é agora mesmo e está a acontecer, a dar-se, a efectuar-se, a efectivar-se, actualmente continuamente a acionar-se na realidade, existe entre um não já e um não ainda. Ora bem, onde é que nós nos encontramos para “compreendermos” esta sequência de “não’s” e de “sim’s”? Pairamos em suspenso sobre a realidade? A representação geográfico do olhar de cima para baixo permite ver à esquerda os não’s do passado que já não são e à direita os não’s do futuro que ainda não são. Como na escola se desenhava o eixo das abcissas no quadro e o menos infinito era à esquerda e o mais infinito era à direita. Então, o instante presente tende para o grau zero. Mas do ponto de vista temporal, a coisa é diferente e altera-se na sua forma. Quantos minutos passaram depois de eu ter escrito “Tentemos perceber o que está envolvido nesta tentativa de acompanhamento, em que se procura dar conta ou perceber o que acontece quando se passa de um momento de consciência X para um momento de consciência Y”? Há momentos que a antecedem e se esfumam. Não se sabe bem o que estava a passar-se na realidade, embora eu consiga ainda invocar o cheiro a pão torrado e a café, o ruído dos aviões a esta hora do dia com muito tráfego aério, mas também que tinha pensado ir treinar e desisti porque tinha coisas para fazer e podia ir ao meio dia, que tinha coisas para ler, mas a crónica era uma prioridade, que tinha antecipado o fim de semana antes de ter antecipado o fim de ano. Momentos houve depois de a ter escrito em que a realidade está fixa em protocolo: todas as frases que escrevi, mas também todos os pensamentos que tive, o mal estar do corpo porque está muito frio nesta manhã de Dezembro, debati-me com formulações e pensamentos sobre como o dia se ia processar e como tenho de ver exames e dar notas, que tenho de puxar persiana (Deus meu: perdi uns bons 30 segundos à procura da palavra “persiana”. Ia escrever só: janela. Mas ninguém puxa janelas). Estamos continuamente a entrar para dentro da “bola de sabão” universal do momento de tempo presente que de cada vez tem a forma do X, do Y, ou do Z, mas que nos envolve também a nós. Sou eu e X, sou eu e Y, sou eu e Z, sou eu e X e Y e Z e nunca a apenas eu e X+eu e Y+eu e Z como se avançasse aos solavancos, e quando X, Y e Z é uma sequência fixa num ápice, tratasse de um lapso de tempo que também me faz escorregar, também me transfigura, me distende, me metamorfoseia de algum modo. Eu tenho de estar distribuído temporalmente por X, Y e Z para perceber que vejo X e Y e Z e que de cada vez que vejo um momento há momentos que não estão lá na realidade mas que eu “faço ser”, que eu “dou como feitos”, que eu “ponho lá”. Quando eu vejo X, não está lá W, mas W tem de lá estar mesmo que seja “absolutamente indeterminado”. O “absolutamente indeterminado” só quer dizer que eu não sei como vim ali parar, quem me trouxe, quem eu sou, o que fiz, onde estou, que horas são, que dia da semana, do mês, que ano, que lugar, local, sítio, país, etc., etc.. Mas é determinável em absoluto. Quando eu me fixo em Y, X está lá copresente em anexo e retido mas não existe já, eu já não consigo fotografar X. Nem ainda Z, que está a aí a rebenter mas não entrou ainda em acção e pode nem sequer entrar, como aqueles jogadores que o treinador chama para substituírem um colega, aquecem e depois voltam a vestir o fato de treino e a sentarem-se no banco. Não entram. Esta dinâmica entre efectivamente real e efectivamente não real, já não e ainda não, é abrangido por nós. Quer dizer nós não estamos esgotados só no momento que nos absorve, de algum modo pairamos em extase estendidos pelo tempo passado há pouco mas não já e pelo tempo futuro daqui a nada mas não ainda. O eu não é um ponto, a consciência não é estigmática, não é uma perspectiva, mas é este existir, sair para fora de si distendio no tempo entre o passado há pouco que de facto vê mas não realidade já não é e o futuro daqui a nada que está já a prometer ou a ameaçar ou a deixar-nos indiferentes por ser neutro de promessas e ameaças mas que “na realidade” não “é”.