h | Artes, Letras e IdeiasPalestra na universidade Paulo José Miranda - 3 Dez 2019 [dropcap]O[/dropcap] homem tinha à volta dos cinquenta anos e era um destacado poeta do Rio Grande do Sul, embora não fosse conhecido no eixo Rio – São Paulo. A dimensão geográfica do Brasil tem destas coisas, que se agrava com a natural tendência dos humanos em se agarrarem aos grandes centros e ao que é mais conhecido. O homem tinha chegado à cidade de Curitiba para falar de poesia, num evento criado por um dos jornais literários da cidade em conjunção com a universidade, onde decorria o evento. Começou por dizer: “Há poesia que nasce, não de uma relação profunda com a linguagem, mas de uma atenção profunda à melancolia da existência. É o caso dos poetas da dinastia Tang, na China.” Situou o período em que essa poesia ocorreu, citou alguns nomes de poetas e por fim disse que iria ler dois curtos poemas de Li Bai, que ele mesmo traduzira, “Entretendo-me” e “Sozinho Olhando a Montanha”: “É impossível não olhar o vinho, a noite cai sem que me dê conta. As folhas, descem do céu e cobrem-me as vestes. Ergo-me bêbado e vou até à lua, no riacho. Ao longe pássaros, sem que se avistem pessoas.” Depois de ler o primeiro poema e de uma curta pausa, parecendo emocionado com a leitura, leu o segundo: “Pássaros levam suas asas para longe, Deixando uma nuvem no céu, que se afastará. Ficamos sós, montanha e eu, Olhando-nos frente a frente, sem fim.” Fez uma pausa, escutaram-se os aplausos e ele disse: “É impressionante como um poema tão antigo” – estamos no século oito da nossa era – “e de uma civilização tão estranha a nós, mexe tanto connosco. Em ambos os poemas não há um verso que se destaque, não há gota de lirismo incendiário.” E riu-se, antes de continuar. “Mas no final de ambos os poemas não conseguimos evitar a melancolia. E é o nosso reconhecimento da solidão, que é descrita nos poemas, que espoleta essa melancolia. Em ambos, o poeta – o ‘eu poético’, como é de bom tom dizer – está profundamente só. No segundo poema perdido entre a montanha e o céu; no primeiro entre vinho e a lua, que é reflexo no lago. E se ligarmos os dois finais, amplificamos a solidão: ‘Montanha e eu, olhando-nos frente a frente, sem fim’ / ‘Ao longe pássaros, sem que se avistem pessoas.’ A melancolia espoleta, porque a solidão do poeta faz-se sentir em nós. A solidão que é o que nos resta, quando restar apenas uma nuvem no céu, que também se afastará. A solidão do poeta transforma-se na solidão do mundo, da existência, uma solidão que começa em nós, pelo sentimento dos poemas, e se expande muito para alem de nós. Até um não se sabe bem o que é, mas que dói. Estes poemas, sem versos marcadamente líricos, são máquinas perfeitas de fazer doer, de criar ou desenterrar dores, que nos eram estranhas ou estavam apenas adormecidas.” Aquilo que o homem queria mostrar aos estudantes que ali estavam para o ouvir, resumia-se nesta frase, com que – meia hora depois – acabou a sua intervenção: “Num grande poema, a poesia nem sempre se encontra na mecânica dos versos.” Escutou os aplausos, agradeceu, respondeu a algumas questões e lá foi embora, de volta para casa, perto da fronteira com a Argentina, para junto dos seus animais e da solidão verdejante que o rodeava, convicto de duas coisas: que se sabe tão pouco de poesia quanto de si mesmo ou do mundo; e que temos o dever de partilhar todo o desconhecimento que sejamos capazes de anotar.