h | Artes, Letras e IdeiasO Delírio em Gente de Adriana Crespo Rita Taborda Duarte - 2 Dez 2019 [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, que vos confiarei um segredo guardado em acalento; e se quereis que vos diga, a bem da verdade, mal bastante vem à cena literária que tão bem se continue a guardar este segredo. A Adriana Crespo (digo-vos, em surdina, a vós, que tanta experiência tendes nisto de guardar as letras em sereno recolhimento, até que despertem como revelação ao mundo inteiro) tem discretamente espalhado em torno as centelhas de uma escrita em constelação. Personagens variadas, que se cruzam, escrevem, inter-relacionam, erguendo uma cena dramática a que o leitor assiste, ao longo dos anos, de um modo poliédrico, à medida que os mosaicos da vida destas personas, ditados por diários, cartas, pensamentos, poesia, vão sendo desvelados por A. Um metanarrador, divertindo-se, vai iluminando mais uma peça deste mundo ficcional à solta, que tem o longo título de «O Inaudito, Fabuloso e Incrível nunca antes visto Divertimento de A. OU A Aventurosa Vida e Fabulosas Obras de Orlando I, Françoise M., F de Riverday, Maria do Mar, António Pizarro e Artur B.». A nova peça deste engenhoso divertimento de A. chama-se «Alma de Rapariga» e corresponde ao «Diário de F. Riverday», entre os anos 1980 e 1981. Os diversos livros que vão surgindo como interlúdios, numa obra maior, são parte desse metatexto dos divertimentos de A., autora/personagem/espectadora que vai os recolhendo, prefaciando, comentando. No prefácio a «Alma de Rapariga», escreve A., num olhar de mise en abyme, sobre os livros, escritas, que a cercam: Quanto a mim, deveria, em vez de escrever notas e prefácios nestes livros que fui guardando e que vou escolhendo ao acaso e ao sabor de uma obscura necessidade, fazer qualquer coisa mais organizada, mais legível e com certo critério. Mas não me sinto capaz. Orlando I continua a escrever e eu, quando olho para estas vidas como poderei saber por onde começar, ou que sentido trazer a essas tramas.? «Alma de Rapariga» é, assim, mais um capítulo deste delírio em gente que Adriana Crespo vem construindo em torno das figuras de F. Riverday, Maria do Mar, António Pizarro, Orlando I, Françoise M., também A., que, no seu conjunto, constituem uma amititia literária, uma constelação de poesia, crítica, pensamento, diários, cartas, que formam o desenho impreciso (como, aliás, em qualquer constelação), mas até por isso deslumbrante, deste divertimento: uma biografia múltipla, com alguns factos, mas essencialmente sem eles, que se transforma, por vezes, numa colecção de esgares e sensações expressionistas. Aos poucos, o leitor vai percorrendo essa luminosidade que pontua o livro, os livros, e que deve ser lida sempre em dois planos; por um lado, o contorno impreciso de cada estrela bruxuleando, por outro a leitura das linhas, dos desenhos, que a posição de cada estrela vai formando, relativamente às restantes, ou seja tendo em conta o relacionamento das diversas personagens, seus escritos, seu lastro biográfico e bibliográfico. Sempre em dois andamentos: a leitura do texto per se, e também do metatexto, em que cada livro simboliza uma peça única do mosaico. «Alma de Rapariga» corresponde ao diário de F. Riverday, «rapariga de alma de índio, indomável e selvagem», que chega às mãos de A, com o expressionismo dramático e entrecortado que o caracteriza. E tal como nós, leitores, que temos o diário entre mãos, A. vai reconstruir a figura de Riverday, à medida da sua, também nossa, leitura. Mas sobressai certa indefinição indecisa, nesta construção de personagem a um segundo nível: O que se imagina não é o que se vê. É mais intenso e quase mágico do que tudo o que pode ser visto, porque a visão interior arrasta sempre consigo […] uma aura difusa e uma carga de esplendor. É pelo diário, contado na primeira pessoa, que conhecemos F. Riverday, esta rapariga que foge de casa, para se procurar, seguindo viagem com uma companhia de circo. Os traços que a definem vão sendo vislumbrados à luz do que é contado nesta narrativa cruzada de diários e pensamentos. Vamos tendo nota das suas leituras (Nietzsche, como teria de ser); dos seus filmes: Andrei Rublev ė o paradigma; das suas músicas: Bach, como seria expectável; das suas companhias: Orlando I, que lhe dedica um poema citado no prefácio de A., e que convoca a percepção do mundo de Caeiro: Observas tu, pequena Riverday, que os ramos andam pelos céus como os vasos sanguíneos pela tua carne? Ou que qualquer coisa de rosto, no eixo da simetria da folha do plátano? Minha querida amiga que te moves entra a paradoxal inocência de pensar nas coisas pela primeira vez. Também de outros amigos, companheiros de ficcionalidades, se constrói o livro: Maria do Mar, António Pizarro, de passagem, assim como os artistas de circo, em périplo pela Rússia, Clowns expressionistas de ecos brandonianos, loucos, desamparados: os que se encontram fugindo, num mundo à parte de brilhos e esgares: a rapariga de maillot, o palhaço barrigudo, a contorcionista… A vida, a morte o amor, Deus, o ser: os grandes temas são afinal, sempre, os únicos temas. «Quem era eu quando nasci?», pergunta-se F. Riverday no fluxo deste fervilhar que une imagens, dados biográficos, conceitos filosóficos. E a dado momento, uma dúvida explícita, que percorre, no entanto, implicitamente todo volume, nas reflexões, nas perplexidades, nas entrelinhas, nas referências: «Poderá inventar-se uma nova ideia de amor como uma nova ideia de deus? Poderá descobrir-se alguma coisa?». Sim, alguma coisa se descobre na filosofia perene do diário: o conluio do corpo, esse lugar concreto, presença num espaço, e a sensação de infinito: Entre o infinito do corpo e o infinito das estrelas, uma mesma corda se tende, abstracta, real, impensável. Tudo o que preciso é de fazer arder a ideia de deus até à brasa, até ao carvão e até à cinza. Começar a amá-lo como um escaravelho. E só depois venerá-lo como a uma erva, de rosto no chão. Por isso, a náusea, a incapacidade de não suportar o corpo, que há-de, inevitavelmente, terminar na morte, mesmo que o corpo nunca queira morrer: «é uma luta tremenda e monstruosa. Uma luta de titãs impossíveis de imaginar, com forças extremas e incríveis.». O livro edifica-se assim, ao longo das páginas, com trechos de vida, pensamentos episódios, um percurso entrecortado, até atingir esse momento, «esses cristais do tempo que acontecem, quando sem tempo…de repente a vida inteira parece que voa, como um pássaro.». Um livro belíssimo (que além do texto, incluí impressas, em papel vegetal, vinte e três ilustrações, que antecedem os capítulos, supostos desenhos pelo punho de Riverdat), filosófico, e com um lastro de tristeza, na sua tremenda lucidez, que, lido como uma peça única ou como uma estrela ocupando o seu lugar numa constelação de personagens, textos, livros, imagens que compõem o universo de Ariana Crespo, acrescenta um ponto luminoso à literatura contemporânea. Adriana Crespo, Alma sw Rapariga, Lisboa, edições sem nome, 2019