Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasOs fantasmas da língua António Cabrita - 28 Nov 2019 [dropcap]B[/dropcap]aixei uma nova antologia de Nicanor Parra e leio o primeiro poema, o que me transporta às dúvidas sobre uma tradução possível para “angelorum”, que em castelhano corresponde ao genitivo plural de anjo. Como me é absolutamente adversa a relação com a gramática resolvo certificar-me e eis o enunciado: «O caso genitivo é um caso gramatical que indica uma relação, principalmente de posse, entre o nome no caso genitivo e outro nome. Em um sentido mais geral, pode-se pensar esta relação de genitivo como uma coisa que pertence a algo, que é criada a partir de algo, ou de outra maneira derivando de alguma outra coisa. (A relação é normalmente expressa pela preposição de em português.) Já o termo caso possessivo refere-se a um caso semelhante, embora normalmente de uso mais restrito.» Felizmente, as crianças aprendem a falar antes de lhe ser impingida a gramática, de contrário redundaria num “descaso”, numa pleurisia. Voltemos ao angelorum. No dicionário de português online só encontro a sugestão de que significará algo próximo de “angelizar”, embora se adiante uma hipótese esquisita, apresentada como norma brasileira: “Ângelo rum”. Mergulho no Aurélio, que tem muita cachaça, mas nada encontro. Interrogo-me se seria lícito usar angelorum no mesmo sentido em que se diria: o mangano empregou todo o seu “latinório”! – embora isto não nos dispense de encontrar o símil para anjo. Mas, curioso (ou disruptivo?), no dicionário online, é o que se faz seguir a angelorum, imediatamente colado: Dúvidas linguísticas para “par”: o correcto é “um par de meia” ou “um par de meias”? Será difícil a partir de agora resistir à tentação de ver todos os anjos de peúgas. Eis-me a experimentar o problema que tinham os actores do Peter Brook quando ele os mandava para um canto da sala de ensaio, com a recomendação: Deixa-te estar aí meia-hora e não penses no urso branco! Anjos de peúgas: uma imagem francamente obscena, kitch e digna de um Jeff Koons, que acrescentaria um rebordo dourado. Foi-me infiltrada. Há cinquenta anos atrás seria difícil encontrarmos justapostos num dicionário anjos e meias, só o desuso e a desvalorização simbólica dos anjos o autoriza. Também nunca me passou pela cabeça que fosse possível chegarmos a um momento em que uma palavra tão carregada como angústia se afigure volatizada, desaparecida de todas as pautas – os químicos varreram-na com a facilidade com que se desactiva o alarme no telemóvel? Não sei como está a situação no que se refere ao português, mas no prólogo do dicionário etimológico da Língua Espanhola, de Corominas, diz este académico que em nenhuma outra língua são tantas as palavras fantasmas como na castelhana. E observa Octavio Paz, que nos dá esta informação: Eu estremeço só de pensar que há palavras que perderam o seu corpo, palavras que flutuam e que não sabemos já o que querem dizer. As palavras têm um talo histórico que as alimenta e que depois perdem, secando ou fenecendo, ainda que, ao jeito das estrelas, durem com fantasmas. Sabia-o. Mas chocar com as evidências faz-nos abanar. Em Moçambique é essa a impressão que tenho quanto ao uso do português: há um fantasma na grelha que (à força de o virarmos para não esturricar?) se decompõe à vista desarmada. Claro que há, paralelamente, um fluxo de recriação da língua, dado que um rio se faz de muitas correntes desencontradas que se vão compensando a montante e a jusante, porém, se as dinâmicas colectivas têm sempre um lado de sombra, escamoteá-lo parece-me desonesto. Tenho uma idêntica sensação ao assistir a alguns programas populares nos canais de tv brasileira: às vezes coincide o português com o linguajar que ali se exprime, mas, em fundo, borbulha outra coisa. Não digo que seja bom ou mau, só constato que por vezes se burla a língua em nome da comunicação, e que nesta batota nem tudo me parece saudavelmente transgressivo. Transformar substantivos em verbos pode ser enriquecedor, mas que ao mesmo tempo só se saiba empregar os verbos no infinitivo soa-me a amputação. É natural que as línguas sofram recriações morfo-sintáticas, mas já me traz apreensão o laxismo que lhes avoluma os fantasmas. Em quantas palavras se vertebra a letra no comboio, quando o espírito já saltou fora? Ou perdão, o corpo. Palavras que já só servem para ready-mades, esvaziadas de outro significado que não seja o rasto do seu travestimento, da deslocação. Em Moçambique, por exemplo, todo o estuário semântico associado à palavra democracia está moribundo, apesar das aparências. E num pântano, não só proliferam os miasmas e doenças do catano, nas suas águas insalubres ficam certos talos impossibilitados de se desenvolver, volvem impensáveis. Não sei se as palavras não se assemelharão às pessoas: a partir de determinado mau-estado mostra-se inútil a respiração boca-a-boca, qualquer tentativa de reanimação. Porque tudo se distorce com o tempo, sem que demos conta. Surpreendente, por exemplo, o que se passa com a nossa concepção de oração, ao arrepio da original, como nos esclarece o poeta José Angel Valente em El Angel de la Creacion: «Vulgarmente a oração foi definida como um estado em que se fala a Deus (…) Ora, dentro da tradição cristã, que é uma das tradições mais desvirtuadas do Ocidente e, é claro, em quase todos os contextos religiosos, do zen aos ritos afro-cubanos, os estados superiores de oração são descritos não como um discurso e menos como um pedido, mas como o ponto de uma cessação do discurso, como o estado em que alguém parou de falar para abrir caminho para a palavra», ou seja, para a Palavra poder emergir a partir do silêncio que finalmente se fez. Talvez com mais silêncio os fantasmas tomassem corpo. Eu, como ateu, acredito nisso.