A grande dama do chá

[dropcap]O[/dropcap] fumo criava desenhos estranhos nas salas do “Bambu Vermelho”, agitado pelas ventoinhas colocadas no tecto. Pareciam dragões ou grandes peixes que se moviam sem parar, como se fossem fantasmas que ora apareciam, ora desapareciam e se transformavam noutros seres. As mesas estavam repletas de chineses que, encostados uns contra os outros, fumavam e apostavam em todo o tipo de jogos. Muitos deles, refugiados da guerra, tinham muitas histórias, algumas inacreditáveis, para contar. Mas, de noite, escondiam-nas nas profundezas da alma e libertavam todos os outros sentimentos. De vez em quando sorriam, quando as raparigas que deambulavam pelas salas se encostavam a eles e lhes propunham outros jogos, mais físicos. A maioria recusava. Não estavam alegres nem tristes. As suas faces apenas denotavam uma falta de energia, a pouca que lhes restava, e um instinto de sobrevivência que os mantinha vivos. O jogo era uma transfusão de sangue. Luc LeFranc estava numa mesa discreta, longe daquelas onde se jogava mah-jong e outros jogos chineses, com outros três jogadores. O póquer era a sua vida naquela noite.

Numa pequena sala, resguardada por um biombo, Cândido Vilaça estava sentado com Marina Kaplan e Jin Shixin. O fumo torna a vista viciada, o que nem sempre nos permite perceber a realidade. Mas locais como aquele desejavam que a irrealidade absorvesse a nitidez. Para que todos se sentissem donos de uma felicidade aparente, aquela que todos buscavam mas era impossível de descobrir, pensou Cândido. Sentia-se destroçado pela fuga, sem explicações, de Prazeres da Costa. Marina olhava para ele e tentou confortá-lo. Mais fria, Jin explicou-lhe que, para fugir, ele precisava de cortar todos os laços emocionais. De outra forma, não poderia desaparecer sem deixar rasto.

– Meu querido Cândido, cada tempo cria as suas próprias ilusões. Muitas vezes prometem o céu e trazem apenas o inferno.
– Sempre sonhei que ia descobrir o paraíso.

Marina tocou com os dedos no braço dele, antes de dizer:
– Não foi isso que imaginámos todos?

Jin Shixin agarrou no seu copo de vodka e bebeu um pouco. Passou a língua pelos lábios, num gesto desafiador. O seu olhos estavam fixos em Cândido. Marina compreendeu, e sorriu. Jin disse:

– Tudo acaba mal na vida. Os finais felizes são uma invenção dos filmes, daqueles que às vezes iamos ver nos finais de tarde em Xangai, Marina.
– Nesses dias pensávamos que o mundo não ia acabar. Mas viviamos num equívoco. Ou melhor, eu vivia. A Jin sempre seguiu um caminho desenhado pelo seu mestre Du. Eu acomodava-me. Mas não era uma fiel, como ela.

Não era uma crítica. Era uma constatação. Jin fechou os olhos, numa secreta concordância.
– E Du, onde está ele, Jin? Em Hong Kong?
– Acredito que sim.

A sua voz era convincente. Mas Marina, que tinha outros meios de informação, sorriu. A intervenção de Luc LeFranc no caso da resolução da dívida de Prazeres da Costa não tinha tido só o dedo de Jin. Esta olhou para a russa e, compreendendo o que ela estava a pensar, disse:
– Isso é irrelevante. O que importa e que os japoneses não saibam onde ele está. Ninguém consegue voltar atrás, Marina. O mal que os homens fazem, persiste. Não há cura para que o que fazemos. Cada acção é absoluta e eterna a sua consequência. Nem o vosso Deus vos salva disso.
– Talvez não, Jin. Mas nós, que acreditamos mais ou menos em Deus, acreditamos na salvação final. E tu, Cândido?

– Eu sou um refugiado dum mundo mágico que não domino.
– Só quando tocas o teu saxofone e pões as pessoas a dançar consegues iludir o feitiço.
– Ou quando estou apaixonado.

Olhou para Jin. Esta desviou os olhos. Estava inquieta. Marina levantou-se e saiu da sala. Ia ver como estava o ambiente, incluindo nas salas reservadas, onde o ópio era servido aos clientes que se deitavam à espera de pacificarem os seus corpos e pensamentos. Luc LeFranc, por momentos, deixou de olhar para as cartas e para as faces dos outros jogadores e seguiu-a com o olhar. De repente Marina reviu Li Pao. A sua face estava envelhecida, mas era o mesmo fotógrafo que, em anos anteriores, era conhecido como aquele que transformava os corpos das raparigas de Xangai em motivos de desejo, através de calendários e postais muito coloridos e belos.

– Que fazes aqui, Li Pao?
Ele surpreendeu-se e depois fez um sorriso triste:
– Estou a repousar durante uns dias. Vou para as Filipinas. Por lá há paz.
– Por enquanto.- Achas que a guerra chegará lá? Eu apenas desejo fazer as minhas fotos.
– Ninguém é inocente num mundo de pecadores, Li Pao. E as raparigas ficaram em Xangai. Em Manila são menos inocentes.

Marina colocou-lhe a mão no ombro. Junto deles estava uma rapariga filipina que o levou para uma das salas de ópio. Li Pao parecia vergado ao peso das suas dúvidas. Nesse momento deparou-se com Popoff. O sempre glacial russo, parecia transtornado. Ele perguntou:

– A menina Jin está por cá?
– Está. Eu levo-te até ela.

Caminharam um pouco até chegarem ao reservado onde Jin e Cândido, de mãos dadas, falavam. A chinesa mostrou um ar surpreendido com a chegada do russo:
– O que aconteceu, Patapoff.
– Uma coisa muito estranha, menina Jin. Um grupo de pescadores chegou há pouco a Macau com um corpo que estava a boiar e que eles recolheram. Pelos vistos estava preso a algo pesado, mas as cordas desprenderam-se e veio à superfície. Como são nossos amigos chamaram-me antes de contactarem a polícia. Era o corpo de uma mulher branca. Tinha sido morta com um tiro junto ao coração.

Os olhos de Jin brilharam:
– Sabes quem era?
– Penso não me ter enganado. Mas acho que era o corpo da senhora Amélia, com quem o senhor Prazeres da Costa fugira, segundo me tinham contado.

Cândido sabia que fora Jin que informara Potapoff. Mas este acontecimento contradizia Nomura. Ou Prazeres da Costa fugira e matara, por uma razão desconhecida, Amélia. Ou ambos tinham sido mortos pelos japoneses. E só faltava encontrar o corpo do português. Olhou para Jin e, depois, para Marina. Ambos estavam a pensar o mesmo. Jin disse então:

– Agora sim, os dados estão lançados. Não há mais tempo para jogos nas sombras.
Virou-se para Potapoff e acrescentou:
– Vai informar quem deve saber de tudo isto. Depois, quando regressares, falaremos.
Potapoff fez uma ligeira vénia e saiu. Jin virou-se para Cândido:
– Tens medo, Cândido?
– Deixei de saber o que é isso.

Marina sentou-se junto a eles, depois de ter ido buscar uma garrafa de vodka. Despejou uma boa porção em três copos e agarrou num deles. Bbbeu o seu conteúdo de um trago. Virou-se para Cândido:

– Sabes, um dia conheci um padre jesuíta em Xangai. Definia-se como um marinheiro do Papa. E disse-me que que com eles tinha aprendido lógica, metodologia e sentido de justiça.
– É preciso que se faça justiça por Prazeres da Costa. Mesmo apesar dos seus erros.
– Sim, o que custa é morrer para nada.
Jin disse, numa voz firme:

– Neste caso poderemos perecer. Mas será por uma causa.
O olhar de Jin faiscava. Cândido nunca vira tanta certeza concentrada nas íris de uma mulher.
Horas mais tarde, quando Potapoff se foi embora da casa de Jin, esta veio ter com Cândido. Este estava deitado na cama. Ela voltou a despir-se e colocou-se em cima dele. Nas guerras não há empates. E, nessa noite, Jin derrotou-o. Só parou, quando ele lhe pediu para dormir.

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