Macau com dois capitães-mores em 1564

[dropcap]G[/dropcap]il de Góis aguardava impaciente a permissão para a embaixada poder entrar na cidade de Cantão e daí seguir até à capital Beijing, afim de ser recebida pelo Imperador Jiajing (1522-1566), quando em Abril de 1564 uma armada imperial chegou a Cantão. Após uma temporada no mar a combater os piratas, a tripulação requereu pelo seu Capitão-mor o vencimento não recebido há meses, mas revoltou-se devido aos mandarins de província faltarem à palavra e em vez de pagarem, bateram no irmão do Capitão que em Cantão ficara à espera dos vencimentos. Revoltados, os marinheiros chineses após dominarem as cercanias de Cantão e fazerem o seu porto em Tancoão [Dongguan], pelo roubo pagaram-se do que lhes era devido e com pesados juros. Ressarcidos, viraram as atenções para Macau onde planeavam assaltar e queimar a povoação à noite e roubar e matar os portugueses, assim como ir esperar e tomar as naus e juncos provenientes da Índia e de todas as partes que, no período da monção, a maioria em Junho, aqui aportavam.

Sobre as intenções dos ladrões, os mandarins de Cantão mandaram avisar o Capitão de Macau. Por ser na invernada não haveria ainda trezentos portugueses mas, com escravos e cristãos da terra, eram mais de mil e quinhentos. O capitão [seria ainda Diogo Pereira ou, se já chegara, D. João Pereira] e embaixador (Gil de Góis) com muita diligência repartiram os capitães e as gentes da povoação, colocando-as “todas as noites nos passos onde se presumia que poderiam vir entrar os ladrões e aí vigiavam seus quartos até a manhã. E nisto havia muita ordem e cuidado, tanto que de noite parecia que nas mostras que davam que estavam mais de mil portugueses na povoação. Pelo que quis Nosso Senhor que não vieram naquele tempo que se esperava virem, e a causa seria por saberem da maneira que nos podiam achar se nos viessem cometer”, relato do escrivão da embaixada régia João de Escobar, transcrito por Rui Manuel Loureiro (RML), Em Busca das Origens de Macau, de onde muita da informação foi retirada, tal como as citações ao longo do artigo.

Arrasar Macau

Desafiando os portugueses, numa tarde os ladrões em juncos “surgiram muito perto de terra, apegados com a povoação da banda do leste. E, surtos, toda a povoação acudiu à praia a vê-los; não levaram suas armas, porque como era de dia sabiam muito bem que (os ladrões) estavam muito quietos e desagastados, como quem estava em sua terra, porto e morada, não faziam nenhum modo de sinal, nem mandavam recado do que queriam. E o capitão, vendo tão pouco desavergonhamento, mandou pôr sobre um outeiro que defronte deles estava um falcão pedreiro.” Como a perguntar-lhes o que queriam, com essa “peça de artilharia que utilizava balas de pedra”, segundo RML, “atirou muitos tiros e assombrava com pelouro seus juncos, nem isso os movia a se levantarem nem fazerem outra coisa de si, como quem fazia muito pouca conta do falcão. Ao outro dia pela manhã se levantaram e fizeram seu caminho para o mar, pousando muito desagastadamente por entre duas naus nossas que estavam para irem ao Japão, as quais estavam com muita artilharia, nem por isso deixaram os juncos de passar por elas e irem seu caminho contra o mar. Soube-se logo a determinação dos ladrões, que era irem esperar na entrada da barra os juncos e naus nossas que ao porto viessem desapercebidos.” RML refere, “Luís de Melo Pereira trazia uma mercê de uma viagem do Japão e acabara de chegar ao litoral chinês oriundo de Java, onde carregara pimenta” e estando a nau “surta em Lampacau, foram dar com ela e a acometeram, trabalhando de a entrar, o que não fizeram pela muita artilharia que trazia. E deixando-a, se tornaram outra vez a meter no canal do porto dos portugueses, para aí serem mais senhores das embarcações que nele entrassem. E estado no dito boqueirão, quis entrar um nosso junco que vinha com sândalo de Timor, o qual era de Pêro Veloso, casado em Malaca. E à nossa vista o abalroaram sem nós lhe podermos acudir, e trataram-no mal, e tomaram-no se não fora a nau de D. João Pereira que vinha atrás, que, por não haver maré, estava fora esperando por ela. Com este socorro desconfiaram os ladrões fazer já nenhuma presa nas embarcações dos portugueses, pela resistência que em todas achava. E com esta desconfiança se tornaram para Cantão a se refazer do que connosco tinham perdido, e no repartir das presas houve entre eles dissensão e discórdia, de maneira que se dividiram em duas partes. E divisos, os nove juncos tornaram para o Chincheu e os outros nove ficaram com (o) mandarim e pessoa principal na cidade de Tancoão, e daí avexavam todavia a Cantão, sem lhes poder resistir, recebendo os mercadores muita perda por não poderem passar nem trazer suas mercadorias aos portugueses.”

Bastidores

Ao descrever a procissão da Páscoa de 1564, o P. Francisco de Sousa dizia ser “a colónia, que acabava de nascer, uma feitoria comercial, contando apenas 900 portugueses”, sem contar as crianças e segundo Tien-Tsê Chang “superado pelo número de estrangeiros, nomeadamente, vários milhares de malaquenhos, indianos e africanos. Alguns comerciantes, mas muitos deles criados e escravos. Muito poucos chineses (se é que alguns) habitavam em Macau.”

Quando D. João Pereira, com a mercê régia da viagem ao Japão para 1564/65, aportou em Macau trazia o decreto real de 1563, que abolia o cargo de capitão-de-terra e assim foi Diogo Pereira deposto dessas funções e D. João Pereira enquanto aqui esteve ocupou o lugar da capitania.

Aconteceu em 1564 encontrarem-se neste porto dois capitães em viagem para o Japão, um nomeado por via de Malaca (D. João Pereira) e outro por via de Sunda (Luís de Melo), segundo Beatriz Basto da Silva, que refere, “Ambos com credenciais autênticas, é evidente a fonte de conflitos a que os jesuítas, Manuel Teixeira S.J., Francisco Peres S.J. e André Pinto S.J., são chamados para arbitrar e resolver.”

Desde a primeira hora nos destinos de Macau, Diogo Pereira, cujo ânimo nunca repousava, quis aproveitar o tempo e tratou de cultivar contactos com chineses para o “bem da embaixada, não negando sua fazenda para as coisas dela, mas antes a repartia muito liberalmente com os grandes de Cantão em dádivas e peças que lhes mandava.” Ganhou tal à-vontade que veio “convencer aos grandes de Cantão, oferecendo-lhe todo favor e ajuda que houvessem mester dos portugueses, em nome d’ El-Rei de Portugal e de seu embaixador, para desbaratarem os ladrões. E tratou isto com tanta prudência e segredo, que ninguém soube parte deste oferecimento nem das inteligências que trazia em Cantão sobre o dito socorro, à uma porque tinha por impossível os chineses mostrarem tanto sua fraqueza aos portugueses e à outra, porque não se haviam (os chineses) de fiar deles, pela experiência que o dito Diogo Pereira deles tinha.“ Mas algo inimaginável ocorreu, “coisa que nunca da China se esperava, que foi virem pedir socorro aos portugueses contra certos ladrões alevantados”, relata João de Escobar.

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