Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEsferas António Cabrita - 18 Out 2019 [dropcap]N[/dropcap]o primeiro volume da trilogia das “Esferas”, de Peter Sloterdijk, o filósofo alemão explana a sua “teoria do espaço diádico” (uma ontologia que não começa no Um mas no Dois e face à qual a concepção do indivíduo enquanto substância unitária e isolada é uma visão falida, que já nem como prótese pode subsistir). Tudo começa no útero e na ressonância entre dois pólos, o interior do vaso amniótico, e o exterior que se joga no espaço intersubjectivo da mãe e que chega ao feto através do ouvido. E assim se cria a primeira esfera inicial, o primeiro aparato imunológico. O bebé cresce dentro de uma câmara de ecos, ouve o que lhe é invisível. Mais tarde, com o corte do cordão umbilical, e à falta dessa relação de protecção configurada pelo útero, o invisível será suprido pela imaginação e os “seus” elementos subjectivos reinventam-no, projectando-o noutra esfera completada pelas figuras do anjo da guarda, do daimon, a do amigo imaginário, ou a do génio, etc. Contra Lacan, que deu relevo ao estádio do espelho, Sloterdijk promove o ouvido como premissa fundadora da auto-percepção e reflecte nas consequências disso nas duas mil e cem páginas da sua trilogia, absolutamente persuasivas. E ao fazer o elogio da esfera, como explica Paulo Ghiraldelli, faz-se o elogio do “entre”, o elogio do poroso, campo “em que nada existe que não seja relacional.” O que os orientais já haviam dito há muito, mas importa realçar que este novo paradigma, duma penada, salva-nos do isolamento do cogito e da dualidade, que clivava o mundo em sujeito e objecto, e devolve-nos por outro lado a dimensão do sagrado, na medida em que faz-nos perceber que “a retirada de Deus” é distinta de uma “morte de Deus” (esta apenas traduziria um recalcamento do universo simbólico que constitui o próprio tecido da nossa propensão esferológica, o que acarreta mais patologias que benefícios), e em que arruma de vez os pressupostos hierárquicos restituindo-nos a “epifania” como um não-lugar evasivo a todas as formas de lucro (- e hoje, neste amorfo e desvitalizado reino do signo saturado pelo cálculo, este é o verdadeiro escândalo e uma coisa mais difícil de aceitar que o incesto, entretanto convertido em subplot cinematográfico). Afinal, o que foi sempre exasperadamente equívoco na relação de Deus? A imagem que os braços políticos das igrejas quiseram cristalizar, a feição patriarcal e autoritária atribuída a Deus nas Religiões do Livro – quando o relacionamento com o divino pode adoptar uma via mais libertadora, ecológica e reguladora, tão somente, a de uma tomada de consciência do “sentido das proporções”. Numa intuição extraordinária, Sloterdijk comenta que a metafísica começa como uma metacerâmica. Deus, na criação, teria usado da mais avançada tecnologia da época, a do oleiro, a do fazedor de vasos. Esta interpenetração, lembra Ghiraldelli, seria imprescindível à ressonância entre dois polos que, assim vibrando juntos, criam uma esfera, um campo de autoimunização. Mas, o recurso à olaria, realça igualmente, acrescento eu, a dimensão histórica de Deus – e isso muda muito. Pensemos nesta proposição de Martin Buber – filósofo reivindicado por Sloterdijk : «Não conheço outra revelação para além da do encontro do divino e do humano, no que o humano colabora com a mesma medida do divino. O divino aparenta-se a um fogo que derrete o mineral humano. Mas o que resulta daí não é algo que estivesse na natureza do fogo.» Deus seria então o que nos melhora, mas o que Ele É também depende da nossa contribuição. Ou seja, também podemos degradar Deus. É aliás disto que, como ateu intermitente, acuso a grande massa dos fiéis – merda para a grande massa dos fiéis, ignara, que faz tábua rasa do que Kant evidenciou há três séculos: que se é “tão cómodo ser menor”, só em conseguindo dobrar a preguiça e a covardia acedemos ao nosso próprio entendimento e sairemos finalmente da condição infantil; sendo esse o lema do Esclarecimento. O que Sartre repisará dois séculos depois: a necessidade de os homens serem responsáveis pelos seus actos, sem álibis ou entidades transcendentes que os alheiem de assumir-se como a verdadeira mola das suas escolhas. É uma evidência que os homens fazem tanto mais alarde das supostas consciência e identidade, quanto mais querem enjeitar a autonomia. Adquirir uma pauta de valores e ser activo na responsabilidade social, devia ser uma ressonância natural da necessidade de espiritualidade, para quem sinta o apego; seria esse o passo normal na constituição de uma esfera. Mas primeiro, propunha ele, devíamos arrumar a casa. Enquanto colocarmos toda a nossa segurança no airbag de Deus, pela frente e nas costas, não cresceremos o suficiente como pessoas para dedicar espontaneamente amor e respeito aos demais. Na Índia, Deus é «uma criança eterna jogando um jogo eterno, num jardim sem fim» e nós humildemente somos os dados – a liberdade relativa dos dados – na sua mão. E contudo, desse caprichoso lance de dados depende também a “sorte” de Deus. O que volta a situar-nos na responsabilidade dos nossos actos. Assim, procurar em Deus uma ordem, uma harmonia, para o caos do mundo é o mesmo que confundir uma decalcomania com a pele. A crer em Deus, há que aceitar a fé “apesar” do caos que se incrusta na rugosidade do real, mas o apelo deve levar-nos à insatisfação que antecipe a decisão e a autonomia. Os Budistas não falam em Deus, dizem antes que os rios procuram o mar. De facto parece mais justo realçar que talvez nos espere o oceano fragoroso que antecede as calamidades, sendo nosso dever não fugir ao repto. A esferologia de Sloterdijk ajuda-nos a regular as miras e não por acaso o filósofo concebe a filosofia como uma “medicina da alma”.