VozesOpressor oprimido João Luz - 14 Out 2019 [dropcap]N[/dropcap]a passada quinta-feira o homem responsável pela agressão monstruosa que desfigurou para sempre a esposa foi condenado a 13 anos de prisão. Durante as sessões de julgamento nunca mostrou arrependimento, remorso, um pingo de humanidade. Infelizmente, a história da Lao Mong Ieng é daquelas que se repetem desde tempos imemoriais, pelos quatro cantos do mundo. Importa recordar, as vezes que for preciso, que a mulher ganhou autonomia como um ser independente há muito pouco tempo. Aliás, ainda é comum, em muitas sociedades ditas modernas, a mulher ser transacionada como um bem que passa da propriedade do pai para a esfera jurídica do marido. Um peão no caderno dos Direitos Reais dos códigos civis pouco civilizados, uma coisa sobre a qual o macho tem absoluta titularidade. Algo descartável, findo o prazo de validade. Em Portugal, morreram 30 mulheres vítimas de violência doméstica este ano. Três por mês, num pequeno país. Este número esconde as que sobrevivem, as que são vítimas da violência pão nosso de cada dia. Este texto não é dirigido a um acto execrável, não tem como alvo os psicopatas imunes à empatia, que não conseguem reconhecer o outro. Este texto é para os que escarnecem de movimentos civis como o #MeToo. Não me vou focar neste movimento concreto, mas nas vozes, 100% masculinas, que acham que vivemos uma época de perseguição ao homem. A vitimização da classe dominante, o choradinho do privilégio, é, para mim, o equivalente à subida vertiginosa da bílis esófago acima. Sempre que uma centelha de insatisfação ameaça perturbar o status quo em busca de igualdade ou simples reconhecimento, um extintor de privilégio tenta apagar de imediato a chama do activismo. Que raio de pessoa vê a igualdade como agressão? Quão frágil é essa capa de privilégio? Durante a luta por direitos civis dos afro-americanos, a América racista sentia-se vítima por achar que o direito de menosprezar e espezinhar estava em perigo. Voltando ao exemplo inicial, é por isso que, só recentemente os sistemas jurídicos começaram a censurar a violência doméstica, assunto em que até há pouco tempo ninguém “metia a colher”. Apesar da recente tendência legislativa, muitas outras formas de agressão ainda gozam de um certo nível de aceitabilidade social. Como se não bastasse a institucionalização da violência, ainda temos de papar com a vitimização constante do opressor, o choradinho de quem está e tem estado sempre na posição dominante. É daí que surgem as alarvidades das marchas do orgulho heterossexual, como se alguma vez, nalgum sítio, a heterossexualidade tivesse sido proibida, punida criminalmente, socialmente reprovada, etc. Mais uma vez, a busca pela igualdade magoa o delicado ego de quem só conhece regalias. Muito semelhante ao orgulho branco, que não entende que a questão do “orgulho” nasce da força necessária para superar opressão dos poderes instituídos, todos os outros contramovimentos à igualdade não pertencem a este tempo. A polarização de hoje, fermentada por lógica primária simiesca de rede social, transformou o homem branco, heterossexual, cristão, no ser mais perseguido dos nossos tempos. Pura “calimerização” da prepotência. Obviamente que não são todos, mas aqueles que confundem igualdade com agressões à sua posição de vantagem. Daí os pavores de que a Europa se esteja a transformar num califado, ou que o Império Otomano esteja em reconstrução invisível mas ainda assim mortífera para o modo de vida ocidental. Daí os pavores de que os media, o Soros, Satanás e 7 anões, estejam a doutrinar crianças para serem gays. Porque é assim que uma pessoa se torna gay, através de publicidade, basta ouvir falar em homossexualidade, da sua existência, e ali começa a incontrolável vontade de cair de boca num pénis. Jardins de falos florescem no histórico dos computadores de pessoas que alimentam este tipo de paranoia compensatória para tendências que têm de ficar escondidas no armário. Situações tão patologicamente tristes como a existência desse unicórnio político que é o neonazi ibérico, sul-americano. Malta de pele escura, olhos escuros, com genes carregados de influências arábicas, que por falta de colo, serotonina, ou inteligência, procuram abrigo entre quem os odeia por natureza. Já agora, também os neonazis de hoje em dia se sentem vítimas, pobres coitados oprimidos na sua nova missão de arautos da liberdade de expressão. Caro leitor, absorva esta ideia: apologistas do fascismo que se proclamam defensores da liberdade de expressão. O mais engraçado e irónico no meio de isto tudo é que quem ficou ofendido com esta crónica não consegue ver que o retrato feito lhe assenta como uma luva.