VozesO poder e a meteorologia Olavo Rasquinho - 3 Out 2019 [dropcap]R[/dropcap]ecentemente foi despoletada uma polémica sobre a interferência do presidente dos EUA na área das previsões meteorológicas, relacionadas com o furacão Dorian. Os meios de comunicação social deram relevo ao tweet que Donald Trump difundiu em 1 de setembro de 2019, em que afirmava que os estados Alabama, Florida, Carolina do Sul, Carolina do Norte e Geórgia “muito provavelmente seriam atingidos com (muito)mais força do que o previsto” (“most likely be hit (much) harder than anticipated”). Cerca de 20 minutos depois, o centro meteorológico de Birmingham, Alabama, emitiu, também via Twitter, um desmentido, afirmando que o furacão não afetaria o Alabama: “O Alabama NÃO sofrerá impactos do Dorian. Repetimos, nenhum impacto do furacão Dorian será sentido no Alabama. O sistema permanecerá muito longe a leste” (“Alabama will NOT see any impacts from Dorian. We repeat, no impacts from Hurricane Dorian will be felt across Alabama. The system will remain too far east.”). No dia 4 de setembro, o presidente Trump, numa conversa com jornalistas na Casa Branca, mostrou uma imagem com o cone de previsão da trajetória provável do furacão Dorian, ao qual fora acrescentado manualmente uma área delimitada a marcador de modo a abranger parte do Alabama. O presidente Trump conversa com os repórteres sobre o furacão Dorian no Salão Oval da Casa Branca, em 4 de setembro de 2019 A polémica provavelmente não teria atingido as proporções alcançadas se, em 6 de setembro, a NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration), à qual o National Weather Service pertence, não contestasse o tweet do centro meteorológico de Birmingham, pondo-se assim ao lado do presidente, e contra os seus próprios funcionários. Em defesa do centro meteorológico de Birmingham, e contra a direção da agência mãe, o diretor do National Weather Service, Louis Uccellini, afirmou que os meteorologistas tomaram a atitude correta para combater o pânico e os rumores de que o Dorian representava uma ameaça ao Alabama. Numa atitude inédita, a National Weather Association (NWA) e a American Meteorological Society (AMS), associações dentro de certa medida rivais, que desenvolvem atividades na área da meteorologia nos EUA, emitiram um comunicado conjunto em que se afirmava “Os últimos dias não tiveram precedentes para a comunidade meteorológica. Por mais que dediquemos as nossas profissões à resiliência da sociedade, esta semana provámos a nossa própria resiliência” (“The past few days have been unprecedented for the weather community. As much as we dedicate our professions to societal resilience, this week we have proven our own resilience.”). Este episódio de imiscuição do poder nas previsões meteorológicas fez-me lembrar o que aconteceu em Macau, ainda sob administração portuguesa, aquando do cancelamento do sinal nº 8 referente ao tufão Victor, que assolou este território nos dias 2 e 3 de agosto de 1997. Perante as informações mais recentes, entre as quais imagens de satélite e de radar, produtos de modelos de previsão numérica e observações de superfície e de altitude, a equipa de turno nos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) decidiu informar os meios de comunicação social que o sinal 8 seria baixado às 9 horas do dia 3. Previa-se que a partir daquela hora as rajadas, que então ainda sopravam com cerca de 100 km/h, diminuíssem de intensidade e deixassem de constituir perigo para a população, em particular para os motociclistas que atravessavam as pontes entre Macau e a Taipa. Logo após a divulgação pelos meios da comunicação social da hora de passagem do sinal 8 para o sinal 3, foi atendido um telefonema, antes das 8 horas, de um membro do Governo, que pediu para falar com o diretor. Depois do meu interlocutor se ter identificado, travou-se o diálogo que vou tentar reproduzir (as palavras não terão sido exatamente estas, mas o sentido está nelas implícito): – Olhe lá, o tufão está a ir embora e porque é que vocês não mandam baixar o sinal antes das 9 horas? – Senhor Coronel, a equipa de serviço esteve reunida e, perante as últimas observações, considerou que antes das 9 horas seria arriscado arriar o sinal. Ainda vão persistir rajadas fortes perpendiculares às pontes, o que pode ser perigoso para o trânsito de motociclos. – Ouça lá, eu tenho muitos anos de experiência de Macau, e estou a ver que isto já não vai dar nada. Não dá mesmo para descer o sinal antes das 9? – Não senhor Coronel… Não dá mesmo. – Deixe-se dessas histórias, estou mesmo a ver o que é que vocês querem… – Desculpe, senhor coronel, o que pretende dizer com isso? A resposta não foi imediata. Teceu algumas considerações sobre os anos que estava em Macau, muito mais do que eu, e que conhecia bem o comportamento dos tufões, etc. – Pois é, o que vocês querem é ter mais um feriado… Fiquei estupefacto. Não era normal um membro do Governo tentar influenciar uma decisão técnica, acusando servidores públicos, alguns dos quais se encontravam a trabalhar há mais de 18 horas, de pretenderem manipular em seu favor a hora do arriar do sinal de tufão. Nessa altura era habitual que, se o sinal 8 estivesse ainda içado ás 9 horas, os trabalhadores da função pública não irem trabalhar. Tratava-se de uma prática, mas não de uma regra rígida. O Governo poderia estabelecer a hora a partir da qual os serviços começariam a funcionar. Neste caso foi decidido, e bem, que se começasse a trabalhar às 10:00 horas. Alguns dias depois, um outro membro do Governo teve uma atitude totalmente contrária à do seu colega. Foi recebida na direção dos SMG uma carta do Secretário Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, José Alves de Paula, datada de 5 de agosto de 1997, na qual se enaltecia “a clareza e serenidade com que as informações foram sendo transmitidas à população, permitindo que esta se acautelasse e preparasse para a situação iminente, sem que houvesse lugar para especulações ou boatos que poderiam gerar pânico ou alarme desnecessário.” Um outro exemplo deu-se no princípio da década de 1980 aquando de uma greve da função pública, em Portugal. Independentemente de concordarem ou não com a greve, os elementos da equipa que apresentava em direto o boletim meteorológico na RTP decidiram que não haveria informação meteorológica nesse dia, atendendo a que não tinham dados atualizados para esse efeito. Houve, no entanto, um elemento do grupo que cedeu à pressão exercida pelo presidente do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG), e apresentou o referido boletim, embora não estivesse escalado para esse dia, sem informar o público sobre a falta de dados atualizados. Esta atitude despoletou a recusa dos restantes meteorologistas em voltar a colaborar na apresentação televisiva, deixando de se fazer durante alguns anos a apresentação personalizada do boletim meteorológico. O assunto teve grande repercussão nos meios de comunicação social, na medida em que a RTP era a única estação televisiva em Portugal e a informação meteorológica, integrada no telejornal das 20:00 horas, tinha grande audiência. Os agentes do poder não resistem, por vezes, em se imiscuírem em decisões técnicas que nada têm a ver com a política.