Albano Silva Pereira, fotógrafo, curador e director do Centro de Artes Visuais

Albano Silva Pereira está em Macau como curador da exposição “Língua Franca – 2ª Exposição Anual de Artes entre a China e os Países de Língua Portuguesa”, que inaugura na quinta-feira e estará patente no Antigo Estábulo Municipal de Gado Bovino e Vivendas Verdes da Avenida do Coronel Mesquita n.° 55-57. O HM aproveitou para falar com o homem que fez a fotografia portuguesa em termos expositivos, criador dos míticos Encontros Fotográficos de Coimbra e director do Centro de Artes Visuais. Na primeira pessoa, o artista e curador fala do amigo Robert Frank, da vertigem das redes sociais e da fotografia como ferramenta de diálogo

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau a organizar a “Língua Franca – 2ª Exposição Anual de Artes entre a China e os Países de Língua Portuguesa”. Tem outros projectos em mente para Macau?
Para mim, este projecto até nem é o mais aliciante. Aliás, este está feito. O mais aliciante é o futuro. Criei um projecto dos mais destacados em termos mundiais durante 30 anos, para onde veio gente de todo o mundo. Com a minha experiência e conhecimento, posso criar aqui uma plataforma onde o turismo, a animação e, sobretudo, o diálogo mundial e universal podem ser produzidos. Isso é o que me interessa. Quero cumprir este projecto (Língua Franca) dentro da minha filosofia. Depois gostaria de ter condições práticas e estabelecer um diálogo institucional no sentido de criar aqui a dois, três anos, uma bienal de grande qualidade mundial.

Olhando para trás, para a forma como as coisas começaram, como vê a evolução dos Encontros de Fotografia? Acha que podem ir além de si?
Além de mim já vai, porque há um equipamento de 1600 metros quadrados na cidade de Coimbra, o Centro de Artes Visuais, que é uma afirmação da arquitectura portuguesa, do João Mendes Ribeiro, e a reutilização de um espaço do século XVII que era o Colégio das Artes. Começou com os Encontros de Fotografia e hoje é o Centro de Artes Visuais e não é por acaso, porque o tempo deu-me razão. Talvez o polo mais importante dos Encontros de Fotografia seja o prestígio, que não tem a ver com números, mas com ideias. Eu venho do cinema ao mais alto nível, Manoel de Oliveira é o topo e eu fui durante muitos anos o seu braço-direito. Trabalhei também com Wenders, por exemplo. Na altura, já trabalhava com fotografia, portanto, as minhas referências culturais e filosóficas eram sempre experimentais e pioneiras dentro das grandes correntes modernas da arte contemporânea. Eu trabalho a fotografia como arte, na tradição da estética alemã da Bauhaus e mesmo do século XIX. Digo isto com todo o respeito pelo jornalismo, a fotografia de moda, de publicidade, e por essa grande riqueza da fotografia que é a multiplicidade de estéticas e de objectos. Portanto, tive critério e a melhor escola em 1970.

Como se manifestou esse background?
O exercício da programação e das estratégias que tomei assentaram numa fórmula perfeita na utilização da fotografia. Primeiro: um critério rigoroso na divulgação dos grandes mestres da fotografia contemporânea. Acabou de morrer, na semana passada, um dos mestres e um grande amigo que me deu grande prestígio internacional. Porque ninguém fazia Frank. Em 1986 ninguém fazia Frank, o Frank estava morto, a fotografia tinha acabado, este foi um marco decisivo e estratégico em termos internacionais. Depois dos Encontros de Fotografia de Coimbra, o trabalho de Robert Frank foi exposto na National Gallery, em Washington, na Tate em Londres. Quando se faz Frank todas as portas se abrem. Isto é como a Fórmula 1, se tiver aqui o Vettel você já não tem mais problemas, os outros põem-se em fila e vêm atrás.

Portanto, exibir Robert Frank foi o começo.
Sim. Mas, por outro lado, criei uma estratégia pedagógica em relação à história da fotografia com nomes absolutamente extraordinários, Jacques Henri Lartigue, Strand, August Sander, Bauhaus, mostrei as grandes linhas estéticas da história da fotografia. Também adaptei cada exposição a cada espaço, que utilizava criteriosamente e dispunha no mapa da cidade. Coimbra é uma cidade com um património arqueológico e histórico imenso, a começar pela Universidade. Abri os primeiros museus da universidade à fotografia. O Museu de Zoologia, Museu de Antropologia, Museu da Ciência Laboratório Chimico, igrejas. Dispus pelo território da cidade um conjunto de exposições e as pessoas vinham mais de fora do que de Coimbra. Chegámos a ter 100 mil visitantes, no final da década 1990. Outro factor foi o risco, aposta na contemporaneidade, no desenvolvimento da fotografia. Nunca olhámos para o passado, apesar de divulgarmos a arqueologia e história da fotografia, como o trabalho do grande pesquisador, viajante, antropólogo e etnólogo do século XIX Cunha Moraes. Construímos investigação à volta de colecções que não havia. Estabelecemos diálogos e pontes que na Europa eram raros. Os franceses eram muito franceses, os ingleses eram demasiado ingleses, os alemães nem se fala. Essa capacidade de diálogo que os portugueses demonstraram ainda hoje, por exemplo na cena política mundial, é um património português, uma virtualidade da cultura portuguesa.

Como vê o hoje e o amanhã dos Encontros da Fotografia?
Não tenho dúvida nenhuma de que tenho feito escola, até são os fotógrafos que o dizem. Todos os fotógrafos portugueses nasceram nos Encontros de Fotografia. Jorge Molder e Paulo Nozolino foram pioneiros comigo. Daniel Blaufuks, António Júlio Duarte, André Cepeda, Inês Gonçalves, José Rodrigues, os novos beberam todos em nós. É evidente que eu um dia morro, estou cada vez mais perto. Obviamente, o lugar de director artístico, de programador, de curador é essencial numa instituição destas. É evidente que aquilo que eu faço é à imagem da minha filosofia.

No meio da agenda preenchida com curadoria e produção, também fotografa.
Eu também sou fotógrafo e artista. Faço exposições e não é em qualquer lado. No Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, acabei de ser um dos finalistas do Prémio BES. Gosto de fazer curadoria, é a minha vida. Mas prefiro fotografar e filmar. No meu Instagram pode ver. Estou a fazer um arquivo da minha viagem, que vai ser uma exposição no próximo ano. Estou a produzir uma exposição em termos de curadoria, mas estou a produzir também uma exposição com o meu olhar pessoal sobre isto.

Robert Frank morreu há duas semanas, uma figura incontornável da fotografia e um amigo próximo. Como começou esta amizade?
Em 1985, o Frank estava, entre aspas, morto e havia mesmo muita gente que pensava que ele tinha mesmo morrido. Ele é um ser mítico, é um dos últimos sobreviventes da geração Beat, do Kerouac, Ginsberg, Burroughs, de onde eu descendo. Quando comecei a organizar o festival Encontros de Fotografia para mim havia uma meta fundamental em termos internacionais e curriculares: fazer Frank. O equivalente em cinema português a ser assistente do Manoel de Oliveira. Nesse aspecto, sempre fui ambicioso.

Mas como chegou a Frank?
Muito complicado. Ninguém tinha contactos telefónicos, nada. Muita gente dizia que já tinha morrido, porque a fotografia tinha acabado para ele. Em 1986 expus nos Encontros de Fotografia um dos tops da fotografia contemporânea norte-americana, o Duane Michals. Tornamo-nos amigos e um dia disse-lhe que adorava fazer uma exposição do Frank, e que queria saber como seria possível. O Frank fazia, praticamente, edições únicas, isto são bichos muito complicados, com acessos muito difíceis. Não havia cópias, não havia outros originais numerados. Um dia o Michals diz-me: “olha, encontrei o Frank, está vivo e deu-me o telefone porque tem curiosidade em falar contigo. Disse-lhe quem eras, que tinha uma relação muito especial contigo.” Começámos a falar ao telefone, foi como um namoro. Ele é um homem fulgurante, um poeta, um homem isolado, amargurado com o mundo, morreram-lhe os dois filhos, emigrante judeu, tem esses elementos que são decisivos no comportamento dele. A casa dele em Mabou (Canadá, Nova Escócia) parece a casa de um pescador, não se distingue em nada dos 4 ou 5 pescadores de Mabou. É um sítio ermo, desértico, onde ele passava a maior parte do tempo. Bastava aquele indivíduo dar uma ordem à galeria, uma das mais famosas do mundo (Pace/MacGill Gallery), para fazer uma impressão do portfolio do “The Americans”. Uma fotografia do “The Americans” foi vendida pela Christie’s em 2009, antes da exposição no Met, por 624 mil dólares. Da minha colecção, fui obrigado, para o CAV sobreviver, a vender uma por 180 mil dólares. Até a própria casa dele em Nova Iorque, na Bleeker Street, é inacreditável. Frank foi o homem mais austero que vi na vida, despojado. Qualquer outro fotógrafo com a qualidade e o génio fazia dinheiro.

Qual o catalisador para a amizade com Frank?
Há várias particularidades. Eu diria que sou como um filho dele, ou o outro é o Vicente Todolí. Eu venho do cinema, faço fotografia, o mesmo percurso que o Frank. Sou também um marginal, não tão austero como ele, mas também com costela judia e depois, ou temos, ou não temos a tragédia nos olhos. Ele tem e eu também. Depois também entra em jogo a sensibilidade estética, o coração, como ele dizia “feelings, memories”, palavras fundamentais no discurso do Frank. Depois é um génio, ele é um poeta, um grande poeta. Um homem que recusa o grande dinheiro, a facilidade de ter milhões. Ele fez o “Pull My Daisy”, com o Kerouac e o Ginsberg. Fez o “Cocksucker Blues” a convite dos Rollings Stones. Ele já era grande nos anos 60 e optou por fugir à fama, não estamos aqui a brincar. Toda a vivência do Frank, seja ela estética ou de vida, tem uma unidade perfeita e coerente entre a filosofia de vida e a obra dele. Seja no cinema ou na fotografia. É por isso que ele é único. É um homem autêntico, com uma enorme autenticidade entre a obra e a humanidade dele. Pode medir a grandeza pelo impacto que teve a morte dele no mundo inteiro, toda a gente soube que Robert Frank morreu. Morreu na caminha em Mabou, com 94 anos.

E o impacto que teve em si?
Foi muito. Não é que não estivesse à espera. Porque todos os anos o vejo e há uns anos para cá, estávamos a construir um novo projecto, muito pessoal entre mim e ele e já tinha percebido há 5 ou 6 anos que estava a perder a memória. Dizia uma coisa agora e passado uma hora dizia outra. Nunca foi um perfeccionista, mas foi um génio. Na fase do “The Americans” era perfeito, não em termos técnicos, mas porque conseguia ligar a técnica com a ideia, com a sua filosofia de vida.

Autenticidade e técnica com linguagem que é rara nos dias dos telemóveis e redes sociais…
Hoje toda a gente está convencida que é artista e bom fotógrafo devido ao Instagram e porque tem filtros para tudo. Isto é uma miragem, que pode ter algum efeito prático, mesmo que sem coerência, mas, pelo menos, pode ser educativo. As aplicações são a maior traficância que existe para as pessoas se iludirem de que são grandes fotógrafas.

Pode ser a morte da fotografia?
Eu diria que se há morte aqui ela é indolor e não tem cheiro. É uma morte consumista, sem sentido. Não me seduz essa morte. Seduz-me mais a morte do Mishima, o suicídio. É a sociedade em que estamos. O mundo está vertiginosamente a alterar padrões e valores. Mas as galerias vão continuar a ter gente. Há um lado perverso, mas interessante no Instagram e no Facebook que é a utilização da imagem. Quando se vê uma boa imagem tenta-se fazer melhor e para isso têm de se ir aos museus e às galerias para aprender. Por outro lado, mostra-se aos amigos que se é culto e vai-se ao Louvre tirar uma selfie.

Para quem entende a fotografia como arte, presumo que também o fotojornalismo seja algo trágico. Qual a sua opinião da popularidade do World Press Photo?
Eu conto-lhe uma pequena história que explica a minha perspectiva. Um dia o director do Festival d’Arles, François Hébel, que também era director da Magnum, convidou-me para ver uma exposição porque queria saber a minha opinião. Era a primeira exposição do Sebastião Salgado em Arles, “Sahel”. Vi, naturalmente, com atenção, não é que as fotografias do Salgado ou do World Press precisem de muita atenção porque o centro está bem identificado: o sofrimento e a tragédia. Transmitem a lágrima através da técnica fotográfica, a sede, a fome a exploração e por aí adiante. Há coisas que são obscenas, perversas. Pode-se fotografar pessoas em situações difíceis, mas com dignidade, sem exploração dramática. Vi essa exposição, “Sahel”, em silêncio por uma questão de gentileza e respeito por alguém que me leva a almoçar e a ver uma exposição. Saí e disse-lhe que preferia não falar sobre o que tinha visto, porque não gostava. Era a antítese da utilização de uma máquina fotográfica porque pressuponho que antes da estética está a ética. Não sou vendedor de banha da cobra. Naquela exposição o drama é sede e fome, mas particularmente sede, retratadas em criancinhas esqueléticas. Numa fotografia, uma criança punha o ouvido encostado à mangueira onde passava água. E disse-lhe o seguinte: “Estou convencido que não fazia a boa fotografia, a fotografia plasticamente perfeita em termos de luz, de preto e branco. Furava a mangueira, em vez de ter tirado a fotografia. O que o Sebastião Salgado e a World Press fazem é a rentabilização comercial da fotografia de exploração de tragédia, guerra, fome, ciclones, etc. Não digo que não há bons fotógrafos de agência de grande dignidade, a história da fotografia mostra isso, em Capa e por aí em diante.

Não concorda que o fotojornalismo passe da página para a galeria, portanto.
Quando os fotojornalistas se tornam artistas e disputam o preço do print e do tamanho na galeria é perverso. Não é essa a função da fotografia, não estou a dizer com isto que não se possa mostrar. Mas, na minha opinião, toda aquela fotografia é má, muitas vezes obscena, é feita com uma estética artificial, de grande angulares, cores, é tudo fabricado.

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