A Grande Dama do Chá

 

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[dropcap]P[/dropcap]ara Cândido Vilaça, Macau ainda era um labirinto de ruas desconhecidas. De esquinas e becos onde se escondiam almas que não queriam revelar o seu passado. Ele não era diferente. O seu passado atormentava-o, como se fosse um fantasma incapaz de adormecer para sempre. Olhou para o céu em busca das estrelas. Não as viu. Estava uma noite nublada e quente. Caminhava calmamente para o restaurante “Grande Oriente”, onde combinara encontrar-se para jantar com José Prazeres da Costa. Ainda um pouco longe, ouviu o estampido dum tiro, algo que não o incomodou. Ouvira muitos em Xangai, quando os assassínios se sucediam, mesmo nas avenidas mais movimentadas da concessão francesa. De qualquer maneira apressou o passo. Passados cerca de cinco minutos chegou defronte do restaurante. Junto a ele aglomeravam-se algumas pessoas e um par de agentes da Polícia de Segurança Pública. Aproximou-se. No chão estava um corpo. Não tardou a reconhecê-lo. Era o do russo Ivan Sapojnikov, que trabalhava para Toshio Nomura. Não era um bom sinal. Fora morto a tiro.

Os agentes da PSP pediam aos curiosos para se retirarem, enquanto esperavam a chegada de um médico e de um oficial superior. Cândido entrou no restaurante, onde muitos clientes pareciam não se ter apercebido do sucedido. Ou então, não desejavam saber o que se passava.

José Prazeres da Costa estava sentado numa das mesas, com um copo de vinho tinto à frente. Cândido sentou-se à sua frente e, antes de dizer algo, Prazeres da Costa questionou-o:

– Está morto, não é?
– Parece-me que sim.
– É uma desgraça. Tinha estado a falar com ele há pouco. Ia levar um recado meu para o Nomura. Porque é que aconteceu isto?
– Porque tinha de acontecer.

O olhar de Prazes da Costa ficou lívido:

– Achas? Será que também me seguem?
– Quem?
– Os chineses do Bando Verde. É deles que Nomura tem medo.

Foram interrompidos por Tomé de Freitas, o dono do restaurante. O seu ar era pesado. Olhou fixamente para Prazeres da Costa e, depois, para Cândido, antes de perguntar:

– Desejam jantar?

Ambos escolherem os inevitáveis bifes com batatas frita e ovo estrelado, uma especialidade da casa. Tomé de Freitas ia dizer algo mais, mas conteve-se. Não conhecia bem Cândido. Afastou-se, rumo ao balcão. O músico olhou para Prazeres da Costa. A sua habitual postura orgulhosa, mas tímida, dera agora lugar a outra, em que os seus mais pequenos gestos traduziam apenas inquietação. Ou desconfiança e insegurança. Cândido viu-o sondar a sala com os olhos. Tinha medo. Tentou desviar a conversa:

– E Amélia, como está?
– Tenho de tomar uma decisão. Mas agora não sei. Se eu estou em perigo, ela também o poderá estar. Meu caro Cândido, esta morte é um sinal. Não vai haver tréguas. Nomura vai retaliar. Este era um dos seus tenentes. Não sei se sabes mas têm morrido homens do Bando Verde e outros que alinham connosco. Assassinados. Outros desaparecem. Tem sido uma guerrra subterrânea, mas onde só têm sido sacrificados peões. Como no xadrez, compreendes. Agora, a guerra é outra.
– Achas que poderá chegar a ti?

Prazeres da Costa fulminou-o:

– E a ti, se desconfiarem do que fazes. Se perceberem que usas o que te diz a chinesa para nos informares, também serás um alvo. Não era nada disso que o Nomura me prometera. Mas se o russo foi morto… Até o Tomé, que é um grande amigo nosso, e tem ouvidos muito atentos, está receoso.

Cândido franziu os lábios. Bebeu um pouco de vinho, no momento em que colocaram a comida defronte deles. Depois disse:

– A política sempre foi uma actividade perigosa. Aprendi isso em Xangai. E outra coisa. A justiça as vezes não é cega, como o de uma deusa, mas tem pés de chumbo. A polícia portuguesa não vai descobrir quem o matou.

Prazeres da Costa estremeceu um pouco e olhou com insistência para o tecto, julgando, talvez, que dali viesse alguma resposta para as suas dúvidas. Depois comeu um pouco do bife. Parecia ter deixado de ter apetite. A voz trémula dizia tudo:

– Porque é que achas que o russo foi morto?
– Porque sabia demais.
– Não. Foi para começar uma guerra.

Olharam um para o outro, à espreita do perigo. Mas nenhum dos dois o via naquele momento. Cândido, mais descontraído, disse:

– O primeiro passo para resolver um problema é vê-lo de forma clara. Nomura fará isso.
– Achas? Ele, às vezes, perde a calma. E guia-se pelas emoções.

Cândido reparou, pela primeira vez, que Prazeres da Costa tinha os dedos amarelos, por causa da nicotina. Fumava demasiado nos últimos tempos. Por causa dos japoneses. E, sobretudo, por causa de Amélia. Voltou à conversa:

– Isso é mau. Talvez seja o que os chineses do Bando Verde estão à espera. Que ele dê um passo em falso. Já agora, diz-me, ele ficou contente com a minha informação?
– Muito.

Cândido olhou à volta. A noite apresentava-se promissora. Tinham chegado novas raparigas ao restaurante. As que, quando a iluminação deixava de ser tão clara, cirandavam pelas mesas, em busca de companhia. Algumas eram russas, outras da Mongólia. Naquela noite apresentava-se ali uma fadista que tinha vindo de Lisboa. E, de caminho para Goa, aproveitara para conhecer Macau. Apeteceu-lhe ir buscar o saxofone e juntar o seu som ao da guitarra portuguesa e da voz dela. Era uma rapariga de pouco mais de 30 anos. Muito morena e de olhos negros. Usava um xaile, algo que era um acessório quente para as noites de Macau. Mas era uma imagem que definia uma fadista como ela. Ana de Freitas, assim se chamava aquela jovem que tinha a voz quente e poderosa que, à meia-luz, fez silenciar todos os que estavam no restaurante. E cantava:

Venho
Desse tempo já esquecido
Quando as mãos se tocavam nos becos
Trocavam beijos ao luar
Tudo isso é tempo ido
Que saudades de amar

Venho
De esquinas sem idade
Onde mulheres de má fama
Liam sinas cheias de verdade
Onde viam perigos
Numa vida de enganos

Tenho
Uma faca e um canivete
Para sobreviver
Aos meus pecados
Na pele, gravados
No coração, desenhados

Quando ela terminou, quase meia hora depois, entre aplausos, Prazeres da Costa fitou Cândido e disse:

– E a tua amiga Marina Kaplan? Não posso deixar de lhe agradecer o que fez por mim.
– Ela é uma senhora. Poderia, se quisesse, recrutar qualquer pessoa para as suas causas. Até os padres. Ou mais.
– Seria uma boa recruta para Nomura.
– Não a tentes com isso. Perderás uma amiga.
– Achas?
– Tenho a certeza. Marina não alinha com ninguém. Só com os seus interesses. E estes são insondáveis. Já agora, que sabes de Ezequiel de Campos?
– Ele é a pessoa por detrás das cortinas. Tem mais poder do que muitos que julgamos serem os mais poderosos de Macau.

Cândido bebeu mais um gole de vinho. Apetecia-lhe sair dali. Já deveriam ter retirado o corpo do russo do passeio onde tinha sido assassinado.

– Ficas, José? Eu vou indo.
– Vou ficar. Apetece-me ficar embriagado. E conhecer as novas raparigas.
– E depois vai jogar?
– Hoje já jogaram o suficiente comigo. Poderia ter sido eu a morrer.
– É verdade.

Cândido saiu. Não se via ninguém na rua. Sabia-lhe bem o cheiro da noite. Mas sentia que lhe faltava algo. Seguiu rumo ao “Bambu Vermelho”. O aroma do ópio chamava-o, para que se pudesse acalmar. E dormir em paz.

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