A Grande Dama do Chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]O[/dropcap] jazz absorvia todos os pecados do mundo. E depois distribuía-os, em forma de música, para absolver as almas. Enquanto dançavam alguns representavam um papel. Outros, sentados, fumavam e conspiravam só com o seu olhar, que percorria incessantemente o salão principal do hotel Riviera. Algumas mulheres observavam os seus maridos, homens influentes da sociedade de Macau, e outros homens que não conheciam. A cidade era pequena e os segredos de cada um não estavam fechados a sete chaves. Surgiam por ali alguns estrangeiros, alguns deles espiões ingleses ou americanos, e homens de negócios chineses. Só o som da Benny Spade Orchestra suavizava todas as tensões naquele fim de tarde. Estava muito calor nas ruas. Entre os que ali estavam, alguns tinham lido a edição do “South China Morning Post” com as últimas das batalhas cada vez mais sangrentas entre japoneses e chineses e das lutas entre os diferentes senhores da guerra da China. Ninguém ali presenciara uma guerra, com os seus corpos caídos sem vida, as cearas queimadas e os animais mortos. A guerra preocupava, mas estava distante. Vivia-se e dançava-se ao som do jazz.

Enquanto estava em cima do palco, com a Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça pensava que, um dia, poderia ambicionar a tocar sozinho. E contar histórias próprias com o seu saxofone. Ele poderia ser a sua forma de gritar. Indiferentes aos seus pensamentos e ao mundo que caía à sua volta, as pessoas dançavam e transpiravam. Talvez essa fosse a atitude mais sensata, pensou. No meio do fumo reparou que Jin Shixin deixara o salão e fora até à varanda do hotel. Quando, largos minutos depois, deixou o palco, encontrou-a ali. Quando o viram, os olhos amendoados de Jin semicerraram-se, dando ainda mais realce à franja do seu cabelo preto, que lhe caia até junto das sobrancelhas. Quando estava assim, Jin parecia ainda mais bela e misteriosa. Cândido sentou-se a seu lado e um estranho silêncio estabeleceu-se. Por fim ela disse:

– Será isto aquilo a que chamam paz?
– Talvez. Não sei.
– É capaz de ser. Afinal temos de poder confiar em alguém ou em algo, para podermos dormir sossegados à noite.

Durante quase meia hora estiveram ali, falando calmamente, com o coração a responder ao coração, os olhos de um a lerem os do outro, as mãos juntas, até que finalmente Jin se levantou e disse:

– É tarde. Vamos até à minha casa?

Ele fez um ar enigmático e ela respondeu:
– Esta noite não tenhas medo de nada. Os deuses estão connosco.

Saíram do hotel Riviera, passando pelo salão onde ainda estavam alguns portugueses com as suas mulheres e amigos. Alguns jantariam ali, numa socialização quase ritual e preguiçosa. À porta estava Potapoff e um condutor, que os conduziram, em silêncio, até casa de Jin. Quando chegaram esta disse:

– Podes ir descansar esta noite, Potapoff. Estou segura.
– Está, senhora?
– Tomei as minhas precauções.

Não disse mais nada, mas o russo pareceu perceber o que ela queria dizer. Depois de entrarem em casa dela, beijaram-se e as suas mãos procuraram o corpo do outro. Despiram-se e foram até à cama. Os seus corpos embateram um no outro, numa estranha batalha de amor onde ambos queriam ficar sem forças. Para, depois, repousarem, inertes pela energia gasta e sem capacidade para pensarem em mais nada a não ser no corpo um do outro. Só mais tarde Jin soergueu-se na cama e dobrou as pernas, encostando os joelhos aos seus seios. Cândido ficou estendido, com os olhos fechados, escutando a voz da chinesa:

– Só estes momentos me relaxam. Preciso cada vez mais deles. Antes de voltar à minha missão. Compreendes, não é verdade? É preciso estares disposto a morrer no intento de a cumprir. A morrer. Sem metáforas.

Combates ou morres. Fazes frente ao inimigo ou o inimigo mata-te. Tu tens outra coisa a defender, e não é a vida. É o teu saxofone. É a tua música. O teu sonho de vida.
Cândido agarrou-lhe na mão e, depois, soergueu-se. Beijou Jin nos lábios.
– Precisas de amor na tua vida.
– O mundo que amava desapareceu. Agora não há paraísos por descobrir. Tudo são infernos, com máscara agradável ou não. O inferno está a subir até onde estamos a arder.
Jin passou a mão pelo cabelo de Cândido e depois encostou a cabeça dele a um dos seus seios. Ficaram assim durante algum tempo, antes dela dizer:
– Posso contar-te uma história?

Perante o silêncio dele, ela continuou:
– Em finais do século Nove, nas últimas décadas da dinastia Tang, os melhores alquimistas chineses criaram a medicina do fogo, como lhe chamaram. Buscavam a fórmula da mortalidade mas encontraram uma receita mortal. As suas virtudes curativas foram depressa superadas pelas suas utilidades bélicas. Começaram a fazer-se batalhas com flechas de fogo, mas esta pólvora mortal só voltou a ser mesmo efectiva quando chegaram os ocidentais. Porque, na Europa, desenvolveram as suas qualidades, não para curar, mas para criar armas de fogo cada vez mais mortais. E foi com elas que subjugaram a China. É com isso que os japoneses estão a matar-nos. É contra isso que luto e lutarei, até morrer.

Cândido beijou-lhe o seio e olhou para ela e para os seus olhos estranhamente tristes. Jin disse:
– És tão perfeito e, às vezes, inocente. Às vezes penso que és uma espécie de uma fada de que vocês falam, foi enviada para viver no meio dos mortais e descobrir quais são os nossos pecados. A diferença é que te tornaste um de nós. E vais perdendo o que tens de fada.
Riu com o que dissera. Cândido disse:
– Qual é o verdadeiro jogo, Jin?
– O meu jogo não sou eu que o faço. Estou só, acreditando apenas no que sei e rindo defronte dos meus inimigos. Conheço as leis dos ocidentais, porque são fundamentais para que eu conheça os homens. Vou contar-te um segredo. Deixei, em Xangai, que os padres me ensinassem a religião porque é através dela que eles comandam as pessoas. Muitas vezes, eles são mais loucos do que as almas que eles assustam. Mas os padres têm poder. Muitos têm medo deles. Por isso lhes fazem ofertas, para que engordem e sosseguem.

Cândido esboçou um sorriso. Beijou a mão de Jin e virou-a, olhando para a sua linha da vida. Era longa. Depois disse:
– Não desconfias da Marina?
– Não. Desde que ela me ame, guardará os meus segredos, e ela amar-me-á por causa dos segredos que partilhámos durante anos em Xangai.
– Sabes muito sobre ela. Mas, sabes, há sempre as sementes da ambição que muitas vezes toldam o raciocínio.
– O veneno da ambição cegam os que o bebem, Cândido. Julgam estar a beber a poção da imortalidade e enganam-se. O mundo está cheio de invencíveis que foram vencidos. Temos de pensar, se tivermos valores, sobre o que queremos deixar como memória. Podemos deixar um vazio, mas nunca um deserto. Há vida para além de nós.
– E agora?
– Agora estamos a chegar ao momento em que tudo se decide.
– Ou quase tudo. Há uma guerra à nossa volta.

Jin olhou para ele e sussurrou:
– A única guerra que importa é a que agora se trava aqui.
– E Du Yuesheng?
– A diferença entre mim e Du é uma: ele não confia em ninguém e eu sei em quem confiar. Fora isso, ele é o meu mestre. Nunca queiras pôr isso em causa.
Dizendo isto, Jin colocou-lhe o dedo nos lábios, calando-o. Depois beijou-o longamente.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

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