Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá Fernando Sobral - 26 Jul 201927 Set 2019 [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]U[/dropcap]ma ventoinha, colocada no tecto da casa de chá de Jin Shixin, arrefecia o local, o que era uma bênção depois de se sair da rua escaldante, onde Cândido Vilaça se cruzara com vários soldados portugueses que tinham vindo de Timor. Macau iria ter uma noite muito agitada. “O Jardim Celestial”, na Avenida Almeida Ribeiro, era um templo de aromas, e tornara-se rapidamente a loja de chá favorita para quem vivia na cidade. Entrou e a porta fechou rapidamente atrás dele, tentando não dar tempo para que o calor entrasse naquele espaço que queria ser acolhedor. Só um par de lanternas vermelhas acesas davam alguma luz ao local. Da obscuridade saiu Jin Shixin que, movendo-se silenciosamente, dava ainda mais beleza ao cheongsam verde que vestia. Quando chegou perto de Cândido, o português reparou nos pequenos brincos com incrustações em jade que ela usava nos ouvidos e que lhe davam um ar requintado e distinto. Vender era uma arte. Jin deu-lhe um tímido beijo nos lábios e disse: – Sempre vieste. Depois, encaminhou-se para um pequeno móvel de bambu, onde estava um bule com chávenas de chá. Encheu duas, levou-as para a única mesa que existia na loja e fez sinal para ele se instalar numa das cadeiras disponíveis. Jin sentou-se de forma a ver a porta, enquanto Cândido olhava à volta. A sala da loja parecia um dos últimos redutos da China antiga. Os móveis de bambu e de madeira de cerejeira acomodavam várias estatuetas de jade e laca. E alguns deles estavam repletos de recipientes de vidro que continham chás das mais diversas proveniências. Não admirava que Jin fosse conhecida como a Grande Dama do Chá de Macau. Era difícil não se encontrar ali o que se desejava. Depois ele desviou a atenção para os olhos sempre atentos de Jin, que a parca luz parecia tornar ainda mais misteriosos. – O que têm os meus olhos, Cândido? São uma surpresa para ti? Há quem se limite a fitar o vácuo. Os meus olhos alcançam para lá do que há para ver. – Eu sei. E também escondem, por vezes, mais do que desejamos. Ela não disse nada e a sua mão direita agarrou na dele e acariciou-a. – Sabes porque te disse para vires aqui? – Imagino. – O perigo ronda-nos. E está na altura de darmos um passo em frente. Suponho que os japoneses e os seus amigos planeiam algo. Temos de lhes dar algo que os leve para o caminho que queremos. – E onde é que eu posso ser útil? – Amanhã vai chegar um grande carregamento de uísque e cognac francês, encomendado por Du Yuesheng. Era um daqueles que ia regularmente para Xangai, num dos negócios dele, como sabes. Agora vão começar a vir para aqui e parte deles irão depois para Hong Kong e Singapura, onde Du pensa estabelecer parte dos seus negócios. Cândido olhou para ela durante algum tempo. Tentou perceber as intenções dela: – E que queres que faça? Que diga a Toshio Nomura ou ao José Prazeres da Costa que isso vai acontecer? Para quê? Para eles vos emboscarem? – Nomura não fará isso. Seguir-nos-á até a um armazém fictício, onde ele julgará que será o nosso esconderijo. Ao mesmo tempo passará a confiar em ti. E, quando for necessário, dizer-lhe uma mentira ele acreditará que é verdade. Posso confiar em ti? – Não o provei já? A conversa foi cortada pelo ruído da porta. Jin levantou-se. Luc LeFranc entrou. Olhou para ela e disse: – Venho buscar as minhas encomendas. Sem dizer nada, Jin passou por um biombo que escondia o resto da sala dos olhares indiscretos e voltou poucos minutos depois. Trazia um saco e uma grande caixa. O francês abriu a caixa e ficou por momentos a vislumbrar o interior. – C’est magnifique! – Também acho. – Du vai ficar contente. Jin sorriu. Por detrás do biombo surgiu o russo Patapoff, que, em silêncio, agarrou na caixa e a levou para fora da loja. Luc LeFranc, antes de se despedir, disse: – A transferência já foi feita. – Ainda bem. Tudo corre como planeado. Sem olhar para Cândido, Luc saiu da loja. Pouco depois ouviu-se o ruído de um motor de automóvel e Potapoff voltou a entrar. Depois voltou a desaparecer por detrás do biombo. Jin sentou-se novamente ao lado de Cândido. – Não percebeste, não foi? – Entendi que era uma encomenda para o teu mestre Du Yuesheng. Como nos velhos tempos de Xangai. – Nunca deixou de ser o meu mestre. E a encomenda era um gramofone vindo de Singapura. Du não nasceu no meio da aristocracia chinesa. Mas aprendeu a gostar de ópera. E precisava de um gramofone para, ao final da tarde, a olhar para o mar, escutar aquilo que o acalma. Não descansei enquanto não consegui arranjar-lhe um. Cândido olhou-a fixamente. Jin tinha o condão de dizer uma verdade, para esconder o que não queria partilhar. – E o saco, era o quê? Chá? Ela deu uma gargalhada. – Luc não é propriamente um apreciador de chá. Prefere outras coisas. – Dinheiro, não é? Lembro-me dele. Era polícia em Xangai, na zona francesa, não? – Tens uma boa memória. Isso é bom. Dá-nos vantagens. Lembrar o que os outros esquecerem é uma arma secreta. Mas, deixa-me que te diga, se falares com ele não mostres que o conheces. Ele veio para Macau para apagar o passado. – Como muita gente. – Não é diferente da Xangai que conheceste. Ali ninguém queria saber de onde vinhas, desde que tivesses dinheiro e fosses estrangeiro. Eu isso não esqueço, Cândido. Xangai era uma cidade colonial. A cidade das concessões. Cada potência ocidental tinha ali o seu pedaço da China. Cada bocadinho do nosso coração. Agora foram substituídos pelos japoneses, mas nada mais mudou. Cândido apeteceu-lhe, naquele momento, ter ali o seu saxofone e tocar uma melodia, para poder suavizar o olhar agreste de Jin. Ela percebeu o que ele estava a pensar e fez um sorriso triste. – A China há-de renascer, pequeno Cat. Vou contar-te uma história que aprendi há muitos anos. Bai Juyi, num poema muito belo, lembra-nos a história dos infinitos amores do imperador Xuanzong pela concubina Guifei. O imperador estava tão apaixonado por ela que começou a não dar atenção aos assuntos do Estado, e por isso, os seus conselheiros, fartos, forçam-no a aceitar a execução da mulher que amava. A tragédia aconteceu. Como consequência disso o imperador acabou por abdicar em favor do filho e acabou a vida na mais completa loucura. A paixão pelo poder dos ocidentais levou à loucura de Xangai. Mas a história não terminará aqui. A voz de Jin era triste, mas sentia-se o orgulho dela. A vontade de vencer. A conversa foi interrompida pela chegada de duas clientes portugueses. Foi um alívio para Jin, que se dirigiu, sorridente, para elas. Queriam apenas chá. [CONTINUAÇÃO]