A literatura não é um divertimento

[dropcap]U[/dropcap]m autor que se sobrevive é como se tivesse escrito a sua obra num tempo a que já não pertence”, escreveu Vergílio Ferreira no seu volume ‘Pensar’ (1992). É verdade que o tempo é cada um de nós a erguer o dia-a-dia, embora o dia-a-dia no-lo devolva através de uma síntese geralmente disfórica que não convida à identificação. O que construímos parece transformar-se numa simples gota de orvalho que se esvai no meio do temporal (o vórtice da duração).

Razão por que, quando se fala de literatura, é de erguer o tempo que deveria falar-se e não do eco massivo e passivo do mundo que se abate sobre nós. Colocar de lado todo esse manancial constituído por linguagens abrasivas (um caudal que se espalha via enxurrada de net e tv) é, ao mesmo tempo, olhar para o palco vazio e, de repente, sem circunspecções, observar a nudez que sobra.

Encaro essa nudez como um corpo no meio da rebentação das ondas e ainda assim de pé, hirto. Um corpo que não se revê no tempo, seja em que tempo for. Desse modo persistirá: num lugar em que é possível não pertencer a absolutamente nada. Tal como Mallarmé escreveu no seu poema ‘Salut’: “Uma embriaguez me faz arauto,/ Sem medo ao jogo do mar alto,/ Para erguer, de pé, este brinde”. Sem se suspenderem as conexões práticas e imediatas, ou seja, todo o discorrer em fluxo do que é emergente e momentâneo, creio que esse corpo se iria transformar de modo passivo na própria água do mar, isto é: limitar-se-ia a ecoar e repetir outras linguagens, perdendo esse ardil (próprio dos infinitésimos) chamado identidade.

Quem diz linguagem diz formas de poder, policiamento discursivo, repetição de esquemas, de matrizes, de palavras de ordem, reprodução social pura. Creio que a actividade literária começa no preciso momento em que temos a consciência de poder deter todo o oceano e de conseguirmos ser, na vertical, um corpo que se afirma, tentando rasgar e moldar a grande massa líquida da linguagem, de acordo com uma dada intencionalidade. Nem que seja por instantes (instantes em que deixamos de pertencer a essa malha de armadura que separa o que se diz ser realidade dos olhos que a contemplarão).

Deter o oceano é escrever e escrever não é apenas teclar e estar fora de todas as maratonas que outra coisa não fazem do que reproduzir-se sem qualquer novidade; escrever é sobretudo mergulhar em si e não limitar o esforço de olhar para onde nunca se olha, o esforço de escutar o que nunca se escuta, o esforço de tocar com a linguagem onde dificilmente ela tocará. Penetrar no inominável será escrever a primeira das letras.

É por isso que a literatura corresponde a uma parte ínfima da voragem de livros que hoje se escrevem e publicam. Para ser literatura, para além da poesia que é a pérola inicial (“tout brûle dans l´heure fauve”*), há duas categorias básicas: sulcar e reinventar a linguagem, por um lado, e, por outro, dizer o imprevisto, o incomparável, aquilo que salta inventivamente para um patamar em que o ser se altera, se redescobre e sobretudo problematiza. Sem estas duas categorias, que são categorias de esforço e não de facilitismo, não entendo que haja literatura (e nela, claro, consigo incluir o ensaio que herda do tempo dos irmãos Schlegel, especialmente de Friedrich, o epíteto de “desdobramento criativo”). Um livro aprazível, modelado com toda a gramaticalidade e com um enredo situado nos limites do provável, não é literatura; é divertimento. No meu caso, para me divertir prefiro desenhar cidades, circular pelos passeios, comer um bom caril ou saborear o lúpulo das cervejas Trevo da Caparica.

Vivemos hoje num mundo que substituiu o essencial da reflexão e do dever-ser (quer do que se levantava para as divindades pré-modernas, quer do que se levantava para os altares civis da esfera moderna) por um fluxo razoavelmente controlado de trilhos privados. Este sublimar generalizado – que todos vemos nas nossas cidades – fez o ‘ethos’ sair de cena em nome das grandes absorções individualistas: o consumo pelo consumo, o espectáculo pelo espectáculo, as viagens pelas viagens, a praia pela praia, o ginásio pelo ginásio, a rede pela rede, a informação pela informação, os festivais pelos festivais e o livro-divertimento pelo livro-divertimento.

Prezando muito um universo plural em que o conhecimento e o prazer podem ser uma escolha e não uma fatalidade cega, penso que a literatura e outras artes têm, hoje em dia, uma responsabilidade única: a de os sujeitos se conseguirem conectar consigo próprios, respeitando, por outro lado, aquilo que os legitima: a intersubjectividade. Precisamente o oposto de quem vive e respira colado à máquina, mortificado antes de tempo face a face ao iphone, deslizando num ‘deixa andar’ de melopeias e auriculares que rema a sós contra a turba, ou que se cinge a copiar gestos, a reiterar  sombras vazias e a purgar as infinitas azias de existir.

A literatura é um repto importante, mas não é uma vaca sagrada. Todavia, no seu nicho, que já não é felizmente um nicho de famosos (hoje circunscrito a fantasmas em estado de ‘zapping’ que aparecem e desaparecem nos media), estar de pé contra as ondas e levedar uma respiração singularizada torna-se num dever maior. É isso, afinal, que devia fazer a literatura ser o que ela na sua essência é.


‘Salut’ e ‘L´Aprés-Midi d´un faune’ em Mallarmé, S., Poésies, Bookking Internationale, Paris, 1993, pp. 13 e 48.

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