O Concerto-opereta para Violoncelo

[dropcap]A[/dropcap]ssinalam-se este ano 200 anos do nascimento do compositor e violoncelista romântico francês Jacques Offenbach, nascido Jakob Eberst em Colónia no dia 20 de Junho de 1819, é um paladino da opereta e precursor do teatro musical moderno. Offenbach aprendeu as primeiras noções de música com o seu pai, Isaac Ben-Juda (1779-1850), chazan (cantor) da sinagoga da cidade. Aos doze anos de idade, era já um violoncelista exímio, razão pela qual a sua família decidiu enviá-lo para Paris, onde receberia uma melhor educação musical.

Após um ano de estudos, o jovem músico passou a actuar na orquestra do Théâtre Nationale de l’Opéra-Comique, quando desenvolveu uma parceria musical e uma grande amizade com o pianista e compositor Friedrich von Flotow. Nessa altura, adoptou uma nova identidade e trocou o seu apelido para Offenbach, em homenagem à cidade natal de seu pai, Offenbach am Main.

Referido pela crítica como o “Liszt do violoncelo”, Offenbach, de um virtuosismo literalmente diabólico, não só se dedicou a compor várias obras para esse instrumento, como participou de uma série de concertos nas principais capitais europeias, inclusive com o próprio Franz Liszt, para além de Anton Rubinstein e Friedrich von Flotow. Na corte londrina, apresentou-se perante a Rainha Vitória I e o príncipe Alberto.

Frequentemente se esquece que o compositor foi um dos maiores virtuosos do violoncelo da sua época, antes de alcançar a fama de criador da opéra-bouffe (ópera cómica) francesa. Foi também Offenbach quem apresentou as sonatas para violoncelo de Beethoven à França. Muito maior do que sua alegria de se apresentar como executante, no entanto, foi a sua paixão pela composição. Assim, desde cedo, escreveu uma quantidade impressionante de obras para o seu instrumento favorito. Muitas peças menores, mas também grandes frescos como a Danse Bohémienne, a Grande Scène espagnole e, acima de tudo, o Grand concerto pour violoncelle et orchestre (também conhecido como Concerto militaire). Partes deste último trabalho foram estreadas num concerto que Offenbach deu no dia 24 de Abril de 1847 na Salle Moreau-Santi, em Paris. É muito provável que Offenbach tenha tocado o seu concerto noutras ocasiões, mas apenas uma actuação adicional no dia 24 de Outubro de 1848 é documentada de forma confiável. Posteriormente, um século passaria antes que Jacques Brindejont-Offenbach, neto do compositor, confiasse ao violoncelista Jean-Max Clément os esboços de piano e a partitura do primeiro andamento. Clément copiou o início do trabalho do original, infelizmente suprimindo várias passagens que o próprio Offenbach havia deixado de fora nas suas apresentações.

Começou a reconstruir o trabalho, orquestrando os dois últimos andamentos a partir dos esboços de piano. Nem Clément nem Brindejont-Offenbach sabiam que os manuscritos do Andante e do Rondo finale (inteiramente compostos e orquestrados por Offenbach) seriam encontrados nos arquivos da família. Como esses documentos não traziam títulos, e porque Offenbach havia modificado substancialmente as aberturas desses dois andamentos, era difícil estabelecer a relação entre as partes individuais do quebra-cabeças.

Como a edição de Clément era extremamente desequilibrada e incompleta, não teve, como uma versão apócrifa do concerto, grande sucesso. Entretanto, os bens de Offenbach, e com eles os manuscritos dos três andamentos, foram espalhados aos quatro ventos. Foi por sorte que se descobriu o manuscrito completo do segundo andamento no Arquivo Histórico da Cidade de Colónia e do Rondo finale na Biblioteca do Congresso, em Washington. O manuscrito do primeiro andamento foi adquirido pela Bibliothèque Nationale de France, depois de ter passado um longo período na colecção de um eminente maestro. Paralelamente, foi encontrado o material completo do primeiro andamento, que havia sido empregue na estreia parisiense, na posse da família Offenbach.

Essas fontes, portanto, nunca foram completamente avaliadas e, acima de tudo, não foram reconhecidas como partes em falta do Concerto militaire. E, no entanto, tudo parecia tão óbvio, particularmente no que diz respeito ao Adagio, que é mais ou menos idêntico aos esboços que Clément empregou, mesmo que a partitura definitiva seja mais desenvolvida. E no que diz respeito ao terceiro andamento: embora certos temas se desviem inteiramente dos esboços, há outros que são idênticos em forma nas duas fontes. Significativa, no entanto, é a semelhança e consistência do timbre orquestral, das tonalidades e, acima de tudo, do carácter uniforme das diferentes secções da obra, o carácter que Offenbach descreveu como “militar”. Na verdade, dificilmente pode ser mais militar do que neste andamento – às vezes muito resplandecente e alegre, às vezes inquietante, se não para dizer doloroso – no qual Offenbach antecipa certas reviravoltas de frase Mahlerianas. Quando reunimos todas essas fontes espalhadas e as avaliamos como um todo, elas encaixam-se para formar um importante trabalho do repertório do violoncelo, uma obra que difere significativamente daquilo que até então era apresentado como uma tentativa de reconstrução.

Apesar da sua popularidade, o Concerto militaire é um índice revelador da negligência a que Offenbach foi votado, pois, embora a obra tenha sido composta provavelmente em 1847 e o compositor tenha falecido em 1880, a publicação da edição definitiva de Jean-Christophe Keck da partitura, baseada nos manuscritos da obra de Offenbach, publicada pela editora Boosey & Hawkes, só ocorreria em 2004. Até lá, o trabalho era apenas “conhecido”” na reconstrução – orquestração, recomposição e arranjo – do violoncelista Jean-Max Clément.

A edição definitiva de Jean-Christophe Keck revela uma obra substancial confeccionada com uma invenção espirituosa, sentimento rico, humor fino, e uma elegância e uma escrita para o violoncelista que raia o impossível. Associado ao finale correcto, um Rondo de cerca de 20 minutos torna nítida a designação “militaire” de Offenbach – o material de repetição, repleto de tambores de parada, possui uma jactância militar que prefigura as referências militares de operetas futuras.

Sugestão de audição da obra:
Jacques Offenbach: Grand concerto pour violoncelle et orchestre
Edgar Moreau, cello, Les Forces Majeures, Raphael Merlin – Hyperion, 2019

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