EntrevistaIsabela Figueiredo, escritora: Chineses “são sábios e estrategas” Andreia Sofia Silva - 3 Jul 2019 A escritora portuguesa Isabela Figueiredo foi uma das convidadas a participar no Fórum Literário Portugal-China, que aconteceu no passado dia 12 de Junho. A autora notou a presença da censura no evento, impressão que não a impediu de se sentir próxima dos seus congéneres chineses. Quanto às letras, “Café-Colina”, título ainda provisório, é o romance que se segue Comecemos pela sua presença no fórum literário na China. Como foi a experiência? [dropcap]T[/dropcap]enho curiosidade sobre tudo o que desconheço e me parece bom. Não sabia nada sobre a China e conheço muito pouco da sua literatura, tirando alguns clássicos. O que sabia da China era muito estereotipado, muito relacionado com o que aprendemos na escola, sobre Macau, no tempo em que ainda tínhamos colónias. Tinha uma ideia da China relacionada com Macau e também relacionada com um certo caos, barulho, que nos é transmitido pelos filmes. Cheguei a Pequim e a realidade é outra, parecia que estava em Estocolmo. É a cidade mais organizada e limpa do mundo, pelo menos daquilo que vi. Seguríssima, muito desenvolvida, com pessoas muito bem-educadas, sem haver assédio às mulheres, que é uma coisa que eu sofro imenso em todos os países. Também gostei do contacto com os escritores chineses, embora tenha havido um contacto bastante formal e um bocadinho protocolar. Mas para mim foi estúpido, e digo isso porque tem mesmo a ver com a minha falta de conhecimento, descobrir que há pessoas exactamente como eu, com os mesmos gostos, na China. Nunca na minha vida pensei em ir à China. Espero que no futuro esta ida traga frutos, e tenho interesse em conhecer mais. Aliás, já fui comprar um livro de um escritor chinês que também participou neste intercâmbio. Qual? Do Su Tong, que tem a minha idade. Não o conheci pessoalmente, mas falaram-me bem dele e ele está traduzido para português. Tenho muita vontade de saber mais sobre a China e também que os chineses me conheçam a mim. Gostaria que a sua editora traduzisse os seus livros para mandarim? Sim, o que quero é que a minha editora, ou uma instituição chinesa ou tradutor chinês, tenha interesse em fazer uma proposta. Esta minha ida à China inaugurou um ramo de interesse pela China, porque neste momento já andei a ver quanto custam as viagens para diversos sítios lá. Fiquei interessada na cultura, era uma questão de ignorância pura. Há ali uma discreta elegância ordenada que é bonita, um sentido estético minucioso. Foi numa comitiva onde estava a ministra da cultura e outros escritores portugueses. Como foi essa partilha? Com os outros escritores correu muito bem, porque eu e o (José Luís) Peixoto e o Bruno Vieira Amaral queremos é brincar, além de falarmos de literatura. Também correu muito bem com a ministra da cultura (Graça Fonseca), mas na verdade encontrámo-nos poucas vezes porque ela tinha a sua agenda e reuniões. Com que percepção ficou do olhar que a China tem face à língua portuguesa e aos escritores? Perante os escritores portugueses, a China tem muita curiosidade, sabem muito sobre o Saramago, Fernando Pessoa, são muito sábios. Eles sabem mais sobre nós do que nós sobre eles, e isso deixou-me envergonhada. As pessoas do público estavam bem preparadas nas perguntas que fizeram. Que temas foram abordados no fórum? O tema era “visão e imaginação na literatura”. Claro que os escritores portugueses todos falaram, sobretudo, da visão, e de como ela é depois importante para podermos imaginar, e sobre como a visão do mundo estimula a imaginação. Penso que os chineses fugiram à questão da visão e foram mais para a imaginação, de forma mais direccionada. Tiveram algum receio de falar sobre a visão. Porque pensou isso? As comunicações deles eram muito orientadas para a forma como a imaginação já era imaginação, e de como esta vem do nada, como se fosse um contacto com outro mundo, e não como nós a vemos. Nós, os três escritores, achamos que a imaginação é fruto de um estímulo da realidade. Para mim foi surpreendente ver como esse assunto não foi, sequer, abordado pelos chineses. Para eles a imaginação cria-se do nada. Eles têm receio de falar da realidade, ou da palavra realidade. Não sei se isto é real ou não, porque também não tive oportunidade de falar com eles abertamente sobre isto. Ficou com a impressão de que não estão habituados a poder falar sobre a realidade que os rodeia? Provavelmente, sim. Mas reparei que as pessoas que estavam na audiência faziam muitas perguntas direccionadas para isso. Para o facto de não poderem falar sobre a realidade? Sim. Pelo facto das observações da realidade não serem bem vistas, bem aceites. Notei mais pelas perguntas do público do que pelas intervenções dos escritores, pois estes salvaguardaram-se muito nas suas comunicações oficiais. O facto de existir censura na China mudou o posicionamento dos escritores chineses no fórum literário? Acho que sim. Isso esteve sempre presente na minha cabeça quando os estava a ouvir. E a questão da censura também esteve presente na minha comunicação, que era implicitamente um discurso contra a censura e a falta de liberdade de pensamento. Foi muito curioso porque depois de ter falado apenas foi dito, pela pessoa que estava a moderar a conversa, que eu dava muita atenção à autobiografia. Disse, de facto, que aquilo que escrevo se baseia muito na minha autobiografia, mas isso foi um décimo do que falei. Falei de como a liberdade de pensamento e de expressão são fundamentais na arte, e que a arte é um veículo de transformação da sociedade, ao nível da formação da mente. Penso que foi escolhido o pedaço da minha intervenção menos incómodo. Não fui a pessoa que normalmente sou, muita expressiva. Fui muito controlada e tudo o que tinha a dizer disse-o implicitamente, mas, mesmo assim… Incomoda-a a aproximação do Governo português à China, no campo das artes, tendo em conta a censura? Os boicotes não servem nada nem ninguém. Só conseguimos mudar uma pessoa se nos dermos com ela. O Ocidente só pode ser lido na China se não boicotar a China. Temos de criar um equilíbrio e dizer quais são as regras. Temos de dizer o que são direitos humanos, o que é digno, e temos de ser muito fortes com isso porque eles são mais fortes do que nós. Temos de ser muito inteligentes para trabalhar com eles e temos de ser humildes para admitir isso. Nós temos a percepção contrária e temos, de facto, uma auto-estima muito elevada. Eu achei que aquela gente é muito mais sábia do que eu. O próprio Presidente da República portuguesa puxa muito para isso, tem esse discurso da grandiosidade de ser português. Esse discurso até pode resultar na China porque os chineses também têm esse discurso da grandiosidade. Nós precisamos de ser muito cautelosos com os chineses, porque eles são sábios e estrategas. Somos mais inteligentes se os aceitarmos e dialogarmos com eles. Foi a estrela do festival literário do Paraty. Acha que a forte presença no Brasil lhe abriu portas para a China? A minha forte presença no Brasil fez com que, neste momento, eu seja uma das escritoras portuguesas mais lidas lá. No resto do mundo não sei. Hoje tive a notícia de que os meus livros foram, de novo, reimpressos, o que é muito bom num país que está a sofrer uma crise tão grande como o Brasil está a sofrer neste momento. Fui convidada para esta comitiva pela visibilidade que começo a ter em Portugal, e pelo facto de começar a ser muito traduzida. De repente, a máquina começou a funcionar, e também ajuda o facto dos leitores estarem à espera do meu próximo romance, claro. Está também a trabalhar num livro de contos… Esse livro de contos começou a ser escrito no contexto de uma residência literária que fiz em Berlim, o ano passado, e o meu objectivo era escrever apenas um conto. Escrevi-o, mas fará parte de uma colectânea de contos que deverá ter como nome “Berlim-Almada”. Esse livro não está ainda escrito porque tenho escrito outras coisas, outros projectos, como um documentário. Além disso, tenho de acabar o meu próximo romance, para sair no Outono. Fale-me sobre o próximo livro. O nome provisório é “Café-Colina”. É um romance sobre a forma como tudo aquilo que nós somos é construído e nós poderíamos ser completamente diferentes, e viver de forma completamente diferente e sermos felizes com isso. Isso quer dizer que poderíamos aprender a viver sem depender de um salário, sem comer batatas. Sermos autossuficientes? Sim. É um livro muito do novo milénio. Não é sobre colonialismo ou questões do corpo, mas sim sobre questões da ética e do Eu, e da forma como estamos no mundo. É um livro que corresponde, como tudo o que escrevo, aos meus ímpetos de comunicar coisas às pessoas. Escreveu muito sobre colonialismo e o seu passado. Como foi parar a um novo tema? Agora porque há urgências. Escrever sobre a minha experiência colonial era uma urgência, era uma coisa que andava a rolar dentro de mim. Em “A Gorda”, há a questão do corpo, da perda, foi a seguinte urgência. E este livro é a terceira urgência. São coisas que andam dentro de mim há muitas décadas, desde pequena, todos os dias olho para o mundo e vejo a forma como vivemos, como pensamos e trabalhamos, e quero questionar tudo isso, mostrar às pessoas. Porquê agora? As coisas vão amadurecendo e há uma altura certa. Esta questão que vou trabalhar no próximo livro não consigo esgotá-la num só romance. Não sei se vou ter uma trilogia, mas é um assunto que para o trabalhar sem ter uma forma didáctica, porque o livro é um romance e tem de ser lido como tal, aquilo que quero dizer não pode ser lá metido como uma imposição ao leitor. Preciso de mais de um livro para falar sobre isso. Arrumei outros assuntos e este impôs-se. Vai voltar a escrever sobre colonialismo? Sim, não me posso libertar disso. É aquilo que eu sou. Há tanto colonialismo em mim que, para mim, Macau é o sítio mais lindo da China, mas nunca lá fui. E faz parte de mim, do que aprendi na escola primária. Em Moçambique as coisas mais bonitas vinham de Macau, os objectos. Pertencia aquele imaginário. Portugal tem muito pouca memória de Macau, já não se fala de Macau. Quando me falam de Macau eu tenho um imaginário, que é o frontispício das Ruínas de São Paulo e daquelas ruas com as lanternas. Tenho ideia das mercadorias que vinham de Macau e que ambicionávamos ter em Moçambique. Em Lourenço Marques havia muitos macaenses com lojas.