Brasas do fundo impróprio

[dropcap]E[/dropcap]screve Leonel Ray, no prefácio ao livro de Jean Portante, A ÁRVORE DO DESAPARECIMENTO, poeta luxemburguês, que a Exclamação, do Porto, lançará amanhã, na Férin, em Lisboa, às 18h30, com apresentação do Nuno Júdice:

«Jean Portante, num lirismo muito pessoal, mesmo se ele escreve como um eco às leituras dos poetas de que gosta, reencontra uma das funções exemplares da poesia: dizer o que escapa, o que se apaga, o que mexe na memória e nas palavras, trazer uma resposta possível à desordem inicial do universo e dos pensamentos e construir, mesmo com “a cinza das palavras”, juntar ramos sempre novos à árvore do desaparecimento.»

Este poeta é muito particular e foi-me útil a coincidência de o ler ao mesmo tempo do que um volume de entrevistas a John Cage, recolhidas por Richard Kostelanetz. Neste, conta o músico que num curso que fez com Schoenberg, o compositor alemão o fez ir ao quadro transcrever um dado problema num contraponto. Quando tiver uma solução, volte aqui e mostre-ma, disse o mestre. O que Cage fez. Schoenberg pediu então, Uma outra solução, se faz favor. E o Cage propôs outra e outra e outra solução, até que aí pela oitava, enfrentou o mestre e foi assertivo: Não há outra solução. Replicou Schoenberg: Ok, qual é o princípio que se subentende em todas estas soluções?

Associo esta história ao engenhoso fecho deste livro, o capítulo a história acabou (soneto desaparecendo), uma sequência de quinze variantes-ocelos que tiveram a sua ignição num verso do argentino Juan Gelman: a noite passa num dorso de gato, e na qual o soneto, no seu “trajecto” para a invisibilidade, passa do MENOS NADA (onde se sepulta o dia) ao MENOS TUDO (que evolou o poema), ou seja, em cada uma das catorze variações desaparece um verso ao soneto até que o ar o toma de assalto. Lê-se em (MENOS NADA):

comecemos por sepultar o /dia debaixo de um monte de horas / desordenadas. por pôr tudo no / cimo da pilha para que seque a // primeira hora do mistério. é / loira e inútil? ou silenciosa / como a viagem entre a vida e / o catálogo das imagens adormecidas? //é de um enterro que se / trata. quando chega ao fim /constrói edifícios sólidos. //o betão da negligência confere-lhe /asas pesadas. ao longo da areia /das nuvens fica o deserto do porquê.

E em (MENOS TREZE):

às vezes atrás da porta um silêncio que se despe.»

Porque escreve sonetos aquele que os sabe condenados a desaparecer? Está dito neste último verso, mas também podemos reapropriarmo-nos de uma resposta de Cage: “Para mim, a significação essencial do silêncio é abandonar toda a intenção”. E eis o princípio que subtende, esta poética.

Portante, um nómada, é igualmente um tradutor de dois poetas sul-americanos que traduzi numa antologia, nos prelos: o argentino Juan Gelman e o chileno Gonzalo Rojas. Para ambos, a reapropriação (ou seja: a intertextualidade) é uma palava chave. E o que redigi para o prefácio da antologia, ajusta-se a Portante:

«Rojas escreveu com insistência que o seu exercício poético não se fundava num projecto de invenção mas antes numa ideia de resgate e nunca descurou uma dimensão reflexiva constante, daí ser a sua poesia levedada pelo pensamento crítico. Nos seus poemas-remontagem apropriava-se dos seus poetas, como Celan, para entabular entrançamentos poéticos com que aclarava as suas visões e superava a sua amnésia global transitória. É deste modo que leio a profusão dos relâmpagos na sua poesia: são flagrantes em que a memória se reconstitui.

Folheando o volumoso La poesía de Gonzalo Rojas, de Hilda R. May, descubro que o poeta corrobora a minha intuição, e declara: “o relâmpago saca à luz, num sentido profundo, as muitas coisas na sua união articulada.”»

Para Portante os relâmpagos são os poetas com quem dialoga, de quem se reapropria, tal como os pré-socráticos se apoiavam nos elementos naturais como núcleos de conjunção unitária.

Embora, com o tremendo desassossego de saber que as presenças que se testemunham exigem despojamento:

«quem deixa uma pegada, deixa uma praga HENRI MICHAUX /nada mais fácil do que /rodar a chave na fechadura. /o norte diz caminha e o sul /levanta-se. a viagem será longa. /chamemos a essa pegada uma epidemia. /inútil calçar luvas. /AS RAÍZES SÃO A PRAGA DA ÁRVORE.» (pág. 21).

Volto ao prefácio de Leonel Ray, que explica bem a urgência de ler este poeta:

«A arte de Jean Portante relembra a dos poetas barrocos, é um teatro de surpresas da linguagem, uma fusão alegre de imagens, de minúsculos enigmas e de hipérboles. Há qualquer coisa de inesperado, de flamejante, a estranheza do jogo de palavras, não excluindo nunca que os véus se rasguem, que o ser surja da aparência e deixe aparecer o verdadeiro rosto, a angústia de viver, o retomar da subida feliz para o lugar irradiante das origens familiares.»

Pegando na epígrafe da primeira parte do livro, o carvão desce (a cinza), de CHAWKI ABDELAMIR: “às minhas fronteiras/ pedi uma/ fronteira”, apetecia ler o livro à luz do “sujeito do limite” e do “pensamento transfronteiriço” de Eugenio Trías, mas nem sempre é vantajoso que a beleza que jaz sob os fragmentos seja explicada, sobretudo se o que se ilumina não é tanto uma expressão subjectiva mas um fundo impróprio, o que fugazmente nos salva e se revela quando se abandona “a intenção” e radiosas e impessoais as brasas se reatam, na cinza das palavras.
«na verdade a cinza nada sabe dos nossos /CÁLCULOS. QUANDO TEM DÚVIDAS ABRE O /pára-quedas da luz. a queda assim / amortecida desenha sobre o caminho as duas /direcções do dia. de uma vem a mais-valia // do sacrifício. Vivemos mais /tempo que nós mesmos. na outra / está pendurada a pele que seca ao sol.»

Há ainda algo de mágico por aqui. O melhor é comprar e ler. Em silêncio.

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