A linguagem I

Noite de inverno
Georg Trakl

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela
Tocam, longamente, os sinos.
A mesa está pronta para muitos,
E a casa está bem arrumada.

Alguns chegam à porta,
Pelos caminhos sombrios da peregrinação.
Dourada floresce a árvore das bênçãos,
O suco fresco que vem da terra.

Caminhantes entram em silêncio.
O limiar petrifica a dor.
Aí, num clarão puro, reluzem
Pão e vinho sobre a mesa.

Ao comentar este poema de Trakl num ensaio, a Linguagem (Die Sprache), Heidegger faz a aproximação em várias frentes ao significado da linguagem poética de Trakl. A poesia usa a língua mas não para designar factos. Mesmo os factos têm sentido. Há uma diferença entre dizer que as temperaturas serão baixas e cairá neve numa noite de inverno, e o chamamento da noite de inverno. Há uma diferença entre o conteúdo de um boletim meteorológico e a vivência, a experiência que se faz da noite de inverno. A poesia chama à palavra. “Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade.” O chamamento convoca. Mas para onde? Pergunta H.? Para nos levar até ao longe ou trazer o longínquo até nós. Este lugar, onde o que é chamado permanece ainda, existe, não enquanto presença, mas “na sua ausência.” O lugar do longe não é espacial. Não é uma casa particular, numa localidade de uma região. Não é também o lugar do tempo unilinear do passado. Pode até dar-se o caso de nunca termos vivido uma noite de Inverno debaixo de neve. Este aí é multidimensional e não tem necessariamente referente.

As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são nem fácil nem imediatamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é uma mera expressão de factos reais e objectivos, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes. Existe como condição de possibilidade de transformação da própria realidade. A realidade dos factos existe apenas, depois de se haver neutralizado todo o potencial de significados. O facto como facto ocorre sempre já num acontecimento de sentido. Há, por isso, significado. Não, factos.
A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos.
A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos fora da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro.

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