Da identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente

[dropcap]R[/dropcap]eflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que:

Não rendem votos aos partidos políticos portugueses, nem remessas de divisas, como as provenientes dos lucrativos emigrantes portugueses na Europa, no Continente Americano, na Austrália e na Nova Zelândia. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante àquele que os sucessivos governos nunca se esquecem de ter: uma Secretaria de Estado para a Emigração ou dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, conforme a semântica política mais ao gosto de cada maioria parlamentar. Nem cabem aí.

Não proporcionam negócios, nem representam quota de mercado nas exportações portuguesas. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Nem cabem aí.

Não proporcionam receitas ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses. Em consequência: não há espaço em estruturas do tipo Alto Comissariado para as Minorias Étnicas e Imigração. Nem cabem aí.

Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente. Porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado. Porque o Estado se habituou à vida fácil de, por lei ou por medidas administrativas, sobrecarregar os contribuintes com impostos e taxas que sucessivos (des)governos vão dissipando, em alegre paralisia ante a eurodestruição da economia portuguesa.

Por outro lado, ex-ricas instituições privadas de utilidade pública, criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições que não dignificaram o País e que, em princípio, deveriam prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – saber onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem – encaram as poucas de cuja existência vagamente sabem, como criaturas interessantes a que, de vez em quando, se dão uns “amendoins” com o afecto próprio do visitante de uma aldeia de macacos num qualquer jardim zoológico.

A Universidade de S. José, em Macau, herdeira do património espiritual do glorioso Padroado Português do Oriente, ingloriamente desaparecido, que gerou espiritualmente as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, terá uma palavra a dizer, um tempo para sobre elas reflectir e um espaço institucional para elas? Fiz esta pergunta na comunicação que apresentei, em Fevereiro de 2011, na Conferência “A Lusofonia entre Encruzilhadas Culturais”, organizada, precisamente, pela Universidade de S. José… Parece não ser assunto que interesse. O seu objectivo mais importante, parece, é ser reconhecida como universidade chinesa…

As Missões Portuguesas nos Estreitos, Malaca e Singapura, deixaram de existir em 1 de Julho de 1981, na sequência dos acordos celebrados entre o Bispo de Macau, D. Arquimínio da Costa, e os Bispos James Soorn Ceong, de Malaka-Johor, e Gregory Yong Soon Nghean, Arcebispo de Singapura, em 26 de Julho de 1977 e ratificados por decreto da Santa Sé, de 27 de Maio de 1981.

A Missão Portuguesa de Malaca, desde a concordata de 23 de Junho de 1886, estava sujeita à dupla jurisdição exercida pelo Bispo de Macau e pelo Bispo de Malaca e incluía as igrejas de S. Pedro e de N. Senhora da Assunção e outras capelas. A Igreja de S. Pedro manteve as suas funções de Igreja paroquial e os seus padres continuaram a servi-las sob a autoridade do Bispo de Malaca, enquanto o Bispo de Macau o permitisse. Morreram os Padres Augusto Sendirn e Manuel Pintado, últimos missionários portugueses em Malaca.

A Missão Portuguesa de Singapura compreendia a Igreja Paroquial de S. José que dependia do Bispo de Macau. Enquanto paróquia deixou de existir passando às funções de simples igreja de devoção e os seus padres continuaram a servi-la – padres Francisco António Bata e João Guterres. O sustento e as despesas destes padres continuaram sob a responsabilidade do Bispo de Macau.

Os bens – imóveis e móveis – da Igreja de S. José continuaram a pertencer-lhe, sendo administrados pelo respectivo Reitor e sob controlo do Arcebispo de Singapura, enquanto o Bispo de Macau continuasse a enviar missionários. Quando isto deixasse de se verificar, seria realizado um acordo sobre a transferência civil desses bens. As outras propriedades pertencentes à Missão Portuguesa (Comission for the Administraüon of the States of Portuguese Mission in China) não entraram neste Acordo.

A Diocese de Macau foi, portanto, o último reduto do Padroado Português do Oriente. Não esteve, o Senhor Bispo D. José Lai, na disposição de convidar os bispos das dioceses onde vivem as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente para uma conferência em que se desse início ao trabalho de unir as pontas desta teia cuja destruição teve início com o corte das relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal português em 1833 e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834.

Agora é tarde. Macau tem um Bispo estranho à Igreja de Macau. Provavelmente, para preparar a sua transformação em paróquia de Hong Kong ou de Cantão. Estabelecida como Diocese em 1576, uma das maiores dioceses do Mundo em área territorial, dela nasceram as dioceses de Funai-Nagasaki (1588), Nanjing (1658), Hanoi (1659), Hong Kong (1841), Guangdong-Guangxi (1848), Dili (1940), Malaca-Johor (1981).

As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são comunidades de portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal, da sua fidelidade secular à Religião Católica e do seu património linguístico – o crioulo – a que chamam “Portugis”.

Ainda assim – ou talvez por isso mesmo – estão excluídas da Lusofonia.

Mas o desconsolo maior, excluídos da Lusofonia somos todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa, padrão ou crioula, enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro, “jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque”, a CPLP pode ser tudo o que quiserem. Não é de certeza uma Comunidade inclusiva de povos livres de circularem no espaço que se diz pertencer-lhes.

5. O fenómeno colonial e as “fonias”

O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, consistiu na validação entre as potências coloniais dos seus interesses de exploração em África. Formalmente assumida no Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso europeu. A ocupação efectiva dos territórios africanos vinha ao arrepio da sua própria tradição e muito para além da sua capacidade económica, social e militar.

O anticolonialismo do Século XX e a descolonização foi um facto sem precedentes na História da Expansão Europeia. Centrou-se no objectivo impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados.

O Século XIX assistira à secessão das colónias americanas dos respectivos países ibéricos. O Século XVIII assistira à independência das colónias inglesas da América do Norte. À excepção do Canadá. Para aí se deslocaram os colonos que preferiram manter-se leais à Coroa Britânica. Ficaram conhecidos por United Empire Loyalists.

A independência das colónias americanas foi um fenómeno “sui generis”. Os respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários. Foram entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido.

A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado da secessão de interesses em conflito. Que opunham europeus geograficamente separados pelo Atlântico. Mas unidos pela mesma cultura e pela mesma língua.

O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo. O seu exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de pertencer aos países ibéricos. Foi derrubado e substituído por holandeses, ingleses e franceses, em várias partes.

A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, resultou da acção da Reforma iniciada com Martim Lutero. Reforma que levou ao esvaziamento do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a queda do Império Romano.

A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são espaços que radicam no fenómeno colonial. Assentam no uso da língua do ex-colonizador como cimento aglutinador.

No interior das antigas colónias; nas relações entre elas; e com as metrópoles do passado.
Em tais espaços, procura-se decantar a História de episódios de força e opressão; transformar em amigos, anteriores inimigos; substituir a violência pretérita pelo diálogo; suprir a antiga exploração pela moderna cooperação.

Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles serão pouco mais do que áreas de catarse ou expiação.

E não parece que possam ir mais além, pelos fortes compromissos existentes entre os ex-países colonizadores, no seio da União Europeia. Compromissos que inviabilizam irremediavelmente a sua participação plena em qualquer outra “Comunidade de Povos”. O Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles. Apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona.

6. Portugueses em Macau

A historiografia de Macau não é unânime quanto à data do estabelecimento dos portugueses neste minúsculo porto do sul da China. Existe uma variação entre os anos de 1549 e 1557.

Os portugueses que se estabeleceram em Macau, no início e ao longo dos séculos, não foram apenas os nascidos no território europeu de Portugal, mas também portugueses euro-asiáticos, asiáticos convertidos à religião católica, euro-africanos e africanos. Estes, na documentação primária, são denominados “cafres”, frequentemente.

Essa teia de portugueses que se identificam como “portugis” ou “cristang” localizam-se: na Índia: Diu, Damão, Dadrá, Nagar-Aveli, Goa, Korlai, Mangalore, Cananor, Mahé, Cochim, Bombaim, Negappattinam; no Sri Lanka: Batticaloa, Trincomalee e Puttalam; na Indonésia: Bali, Java, [Tugu e Brestagi], perto de Djacarta, Ilha de Flores [Larantuka e Sikka], Ilhas de Ternate e Tidore; na Malásia: Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban e Johor Baru]; em Singapura; na Tailândia [Bangkok]; no Bangladesh: Chittagong e Daca; em Mianmar [Sirião].

O destino dos macaenses foi diferente do dos portugueses da Indonésia, da Malásia e do Sri Lanka, por terem defendido a sua terra, pela força das armas, contra várias tentativas de invasão e ocupação pelos holandeses, desde 1603, nomeadamente, pela “Retumbante vitória definitiva alcançada por Macau sobre os holandeses comandados por Kornelis Reyerszoom que, com 14 navios e 800 homens, pretendeu tomar a cidade. O inimigo foi completamente desbaratado ante o indómito esforço dos macaenses, capitaneados pelo denodado herói Lopo Sarmento de Carvalho. Colaboração do Pe. Rho S.J. (de passagem em Macau) a partir da Fortaleza do Monte, e protecção do Santo do Dia, S. João Baptista, em 24 de Junho de 1622 (Cfr. Beatriz Basto da Silva : Cronologia da História de Macau).

Os Macaenses

Os descendentes dos portugueses, nascidos em Macau e, posteriormente, na diáspora macaense, são os macaenses.

Macaense é o euro-asiático de ascendência portuguesa nascido em Macau.

O conceito de Macaense contém três elementos:
– Origem étnica mista: europeia e asiática;
– Ascendência portuguesa;
– Macau e a diáspora Macaense como local de nascimento: Hong Kong, Xangai, Tianjin, Bangkok e, mais recentemente, Austrália, Canadá, Brasil, E. U. América e Portugal.

A independência dos territórios ultramarinos de Portugal, a perda da nacionalidade portuguesa comum dos seus naturais (DL 308-A/75, de 25 de Junho) e a emergência de novas nacionalidades em cada um deles, parece tornar obsoleto o elemento “ascendência portuguesa”, no conceito de macaense. A substituição de “ascendência portuguesa” por “ascendência lusófona” é inviável por não preencher relações de parentesco e por excluir boa parte das populações dos países de língua oficial portuguesa que não falam português.

Por outro lado, durante várias décadas, ao longo do séc. XX, os contingentes de tropa africana em Macau, provenientes de Angola, Moçambique e Guiné, deixaram descendência, exclusiva ou principalmente, com mulheres chinesas, de que julgo não existirem registos. De tais descendentes, de homem africano com mulher chinesa, não há notícia de terem beneficiado do estatuto de macaense. Conheci de vista uma mulher, filha de mãe chinesa e pai africano (Landim, de Moçambique), que era “criada de servir”. Desses sino-africanos ou afro-chineses, cujo número se desconhece, não há notícia de nenhum ter recebido o estatuto social de macaense.

(continua)

Subscrever
Notifique-me de
guest
1 Comentário
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
Afonso Correia
Afonso Correia
23 Mai 2019 22:51

Meu caro Jorge Morbey:

Gostei de ler este seu óptimo artigo. Infelizmente, é como diz: as comunidades de ascendência portuguesa não dão votos nem impostos, não interessam a políticos profissionais.
Fico à espera da prometida continuação, com saudades de Macau desde Dezembro de 1995
Abraço,
Afonso Correia