Sangue

[dropcap]A[/dropcap] correr pelas ruas e a chegar aos joelhos, como sonhava Jim, profeta e guardião das portas da percepção abertas a chuto de rock ‘n’ roll. Hemoglobina, plaquetas e glóbulos a inundarem as calçadas do Cotai, a agigantar vermelho fluvial no campo de visão, a crescer para além das barreiras vasculares da cidade, a coagular discursos harmoniosos de sonhos dourados de paz e felicidade.

Este fim-de-semana, o Cotai, esse paraíso terreno, transformou-se num episódio do “Halloween”, com um Michael Myers trajado a Gucci foleiro a distribuir facadas como um talhante em speed.

Poupem-me à ladainha dos casos isolados, ok? No início deste mês, conhecemos detalhes do enredo de mais um filme de terror passado no quarto de uma pensão, a escassos metros de onde trabalhamos, do local onde rimos, gritamos e escrevemos até os dedos ficarem dormentes.

Enquanto trocávamos piadas, um homem era torturado e espancado até à morte. Não quero alimentar alarmismos, sempre me senti seguro em Macau, uma cidade incomparavelmente mais pacífica que Lisboa, por exemplo. Mas o discurso da harmonia, unicórnios, nuvens cor-de-rosa e violência que não contagia e que fica estanque no garrote geográfico dos casinos não pode continuar. As pessoas não são assim tão parvas.

A dissonância cognitiva e comunicativa não resulta, só atrapalha. É preciso assumir esta realidade, é essencial encarar o problema enquanto tal, como fruto maduro da irreal inundação de pessoas que chega a Macau para jogar. É também fundamental ser adulto o suficiente para reconhecer o que é o jogo, compreender a sua natureza e assumir aquilo que sempre foi: terreno fértil para o crime germinar e florescer. Desde tempos imemoriais.

Entretanto, harmonia veio apaziguar as hostes e falou aos meninos e às meninas na linguagem ancestral da alucinação securitária, justificando o aumento dos crimes violentos em Macau com o desmantelamento de uma rede crime organizado. Orwelliano elevado ao quadrado, o equivalente a dizer que os casos de gripe aumentaram devido à prescrição de aspirina.

De onde vem esta sede por agressão, este desejo de esventrar, de ceifar vida como quem colhe cereal? Que vírus ancestral infecta os nossos genes ao ponto de nos amedrontar e nos reduzir ao papel de bestas de brutalidade e selvajaria? Esta é a nossa natureza, por mais que enchamos a pança de clássicos, erudição e optimismo. O homicídio é a chave que nos descodifica.

O sangue é a vida, já dizia o outro, é tesão, irascibilidade, rubor que dá cor à lascívia, o indizível. É maré de intumescimento a rebentar termómetros, vida a sangrar de ventres férteis, veículo para hormonas e nutrientes do mundo à mais ínfima célula. Seiva nossa que nunca estanca, que não conhece leis, ditames morais, conceitos de decência ou equilíbrio. Corre enquanto pode, enquanto vive, férrea e implacável como uma espada líquida.

O sangue acelera perseguido pelo desespero, pelas palpitações que traduzem situações extremas em violência. O sangue corre nas ruas porque somos humanos, porque nos matamos e agredimos naturalmente, como uma função biológica. Batendo recordes de redundância, diria que nos está no sangue.

Perder tudo num golpe de azar parece combustível mais que lógico para fazê-lo correr desvairado. Apoiar uma sociedade numa única actividade que é adubo para a violência faz o sangue galgar tudo o que é sólido e decente. Ondas vermelhas a embater nos edifícios, pintando de rubro todas as Hello Kitties da cidade, manchando na sombra a concórdia, fraternidade e todos os lugares-comuns incompatíveis com a realidade. Da bizarra equação entre a harmonia que brota da boca dos políticos e o sangue que corre nas ruas, resulta algo semelhante à tomada de consciência de Dorothy a caminho da Terra de Oz: “Toto, I’ve a feeling we’re not in Kansas anymore.” Palavras sábias para quem vive num mundo de fantasia.

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