h | Artes, Letras e IdeiasTroco um sonho pela realidade Paulo José Miranda - 14 Mai 2019 [dropcap]C[/dropcap]onheci Renato no Rio, no quintal de um amigo comum, numa roda de samba. Renato tinha 23 anos, cursava engenharia informática e estava disposto a dar um ano da sua vida pela oportunidade de fazer parte da bateria da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a famosa verde e rosa. “Engenharia é realidade, meu sonho é o samba!” E tocar tamborim na Mangueira, um Carnaval que fosse, fazia parte desse sonho. Trancou a matrícula na faculdade. Disse aos pais que carioca não nasceu pra paulista. E a mim, nessa noite, disse-me que “foi assim que Jamelão começou, a tocar tamborim na Mangueira”. Nessa altura, eu ainda não conhecia esse famoso sambista. Nascido e criado no Rio, Renato sabia tudo de samba. Sabia, tocava e cantava. Não havia explicação que me desse que não fosse musical. Eu falava de uma canção e ele imediatamente cantava. Se estivesse sem instrumento, era uma colher e um copo, ou uma caixa de fósforo, que serviam para acompanhar a sua voz. Para ele, o samba não era música, era religião, sentido de vida. “Pode-se viver sem quase tudo, mas não se pode viver sem samba.” O samba de que me falava e cantava era o samba-canção. Gostava de Carnaval por causa da bateria, mas a paixão era aquele samba fora da estação: o Jamelão, o Cartola, o Nelson Cavaquinho, o Noel Rosa. “Se gosta de Chico, tem de ouvir Noel Rosa, cara! Muito do Chico vem do Noel.” De imediato pediu o violão e tocou “Conversa de Botequim”. Foi ali, naquele quintal, que ouvi pela primeira vez Noel Rosa. E, claro, sorri, não só pela beleza da música, da interpretação, mas porque me lembrei de imediato da música do Chico “Meu Caro amigo”. Uma noite, num botequim em Botafogo, fomos ver um grupo de moças a tocarem chorinho. A namorada do Renato, a Flávia, tocava flauta transversal. A meio do show, chamaram Renato para se juntar a elas. Tal como nos comentários à volta, o cara arrasou no cavaquinho. Tocou um brasileirinho pra nenhum Waldir Azevedo botar defeito. Não sabia que o chorinho era outra das suas paixões. Acabara de chegar no Rio e ainda julgava que samba e chorinho podiam ser parentes afastados. Saímos dali e fomos para a Praia Vermelha, junto ao Círculo Militar, para uma das rodas de samba mais famosas do Rio. Renato puxou-me pra junto dele, apontou para o negão que comandava a roda, e disse-me “aquele ali, com mais anos do que se podem contar, vive na Rocinha e tocou com Cartola”. Não tardou para Renato ser convidado a juntar-se a eles, no meio de todos aqueles veteranos do samba. Durante a noite iam chegando músicos, tocando junto e todo mundo dançando. A mulher do negão que tocou com Cartola, comandava uma venda de cachaça, caipirinhas, cerveja e pastéis. O mundo se acabava naquela praia, entre samba, bebida e o corpo a corpo. Saí mais algumas noites com eles, pela Lapa, Botafogo, Praia Vermelha. As noites eram música, cachaça e cerveja. Aprendi mais sobre samba nessas noites do que no resto da minha vida. Meses depois deixei o Rio. Os anos passaram por mim e as cidades também. Poucos meses antes de voltar para Portugal, em Curitiba, encontrei Flávia num show de chorinho. Fui falar com ela, animado, emocionado. Não se lembrava de mim, até que falei no Renato. Aí, sim, lembrou-se das nossas noites no Rio. Perguntei por ele, pelo Renato. Disse-me que acabaram a relação logo depois. “O Renato? Soube que foi para os States trabalhar numa multi-nacional.” Eu sorri triste e escapou-se-me da boca a expressão da derrota máxima “tornou-se paulista”.