Para que não continue em saco fundo

Senhor Presidente da República,
Estimado Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa,

 

[dropcap]C[/dropcap]omo cidadãos, republicanos e democratas, que ambos somos, embora eu um pouco menos cristão por ser desconfiado, certamente que Vossa Excelência não me levará a mal que aproveite o facto de se deslocar a esta terra generosa e lendária, agora integrada numa pujante Região Administrativa Especial da R. P. da China, país amigo que há séculos aqui nos acolhe e com o qual nos temos entendido num relacionamento que, não sendo de concubinato, se afigura cordial, ora mais amistoso, ora mais interesseiro, mas pragmático e espiritualmente enriquecedor, como por aqui se repete à exaustão, para lhe dirigir estas linhas.

Quero, contudo, antes de avançar com o que aqui me traz, manifestar-lhe a minha profunda satisfação pelo facto de entre os seus múltiplos afazeres ter conseguido encontrar umas horas, numa deslocação que sei por experiência ser fisicamente cansativa e desgastante, para passar pelo umbral da nossa porta. Estou-lhe agradecido.

Seria, por isso mesmo, um desperdício se, por outro lado, não aproveitasse a presença e o natural empenho de Vossa Excelência em cumprir um mandato que do princípio ao fim faça jus à esperança que os portugueses em si depositaram, dando um sentido prático e útil às suas funções, para em meu nome, e tomando por minhas as dores de muitos com quem diariamente contacto no exercício da minha cidadania e da minha profissão – refúgios da minha condição humana e aos quais tenho recorrido, na modesta medida das minhas possibilidades –, para não ficar a dever aos meus aquilo que de mim seria legítimo esperarem por tanto me terem dado quando me confiaram a sua língua, a sua história, a sua cultura e as suas preocupações de gente comum.

Não queira com isto Vossa Excelência pensar que, à boa maneira de alguns dos nossos compatriotas, alguns tão milionários, avaros e desavergonhados quanto Abril lhes permitiu para se darem hoje ares de donos dos regimes, em Lisboa e em Macau, passeando-se obesos entre vernissages e chamadas telefónicas de gestão de “cunhas”, “ agradecimentos” e “sugestões”, na gestão das suas relações familiares, empresariais e profissionais, em que por vezes mal se distinguem a ingenuidade da chico-espertice e da tentativa subreptícia de fraude, para lhe apresentar no dia de hoje um lençol de desgraças. Nada disso.

Quero tão-só trazer até Vós, Senhor Presidente, meia-dúzia de preocupações que nos afligem, que não serão exclusivo dos expatriados de cá, e que embora difiram das que nos circunscreveriam, com todo o respeito, ao universo de uma Linda de Souza, me parecem fazer sentido, crendo eu que Vossa Excelência não lhes será insensível. Vossa Excelência teve o condão de restituir bom senso e humanismo ao Palácio de Belém, livrando-o do umbiguismo bafiento que o infestava, e só isto seria razão de sobra para que lho dissesse nesta hora.

Relevando-se a aridez de encómios, no que sou em regra comedido por tão bem me julgar conhecer a natureza de que somos feitos (presunção minha), gostaria de desde já dizer que, se não de todas, pelo menos de algumas terá ouvido falar. Mas acontece que não tendo voltado a ter notícia de anteriores iniciativas transmitidas a um dos membros da sua comitiva que em tempos por aqui passou numa outra missão, entendi ser altura de renovar publicamente o alinhamento:

1. Passaportes: Numa decisão que teve tanto de infeliz como de compreensível pelo momento que se vivia, o Governo da República decidiu, em 2006, a pretexto da “implementação cabal de uma política de segurança de documentos de identidade e de viagem em consonância com as directrizes fixadas no âmbito da União Europeia e das organizações internacionais competentes”, alterar a legislação relativa à emissão de passaportes. Por via do consagrado (Decreto-Lei n.º 138/2006, de 26/07), os nacionais passaram a ser titulares de um documento de viagem moderno e seguro. O passaporte electrónico PEP de leitura óptica e por radiofrequência, cuja tecnologia viria a ser exportada para outros países, e que incorporou um chip com, entre outros, dados biográficos, imagem facial do titular e informação descritiva da emissão gravada a laser.

O problema é que esse documento, para além de se ter tornado significativamente mais caro, o que apesar de tudo se percebe pela necessidade da sua modernização, passou também a ter um prazo de validade de apenas cinco anos, no que constituiu uma “golpada”. A quem tem um passaporte chinês, omitindo, é claro, a nacionalidade portuguesa às autoridades chinesas não causará grande transtorno. Em especial se for gente de elevado sentido patriótico (aqui são quase todos).

O seu prazo de validade é manifestamente curto e causa grande transtorno aos cidadãos residentes no estrangeiro, atento o tempo normal que a burocracia normalmente leva a emitir esse documento fora do País.

A validade que lhe é conferida, na prática representa um prazo inferior a quatro e meio, visto que muitos países não permitem a entrada com documentos de viagem cuja caducidade ocorra nos seis meses anteriores. Como em relação a alguns países é também necessário obter um visto de entrada, isso significa que, objectivamente, o prazo acaba por ser ainda mais curto. Pior quando podendo-se obter um visto válido por dois ou mais anos (RPC), se é obrigado a solicitar um de apenas um ano porque no segundo ano iria cair nos últimos seis meses de validade do documento. Igualmente com custos acrescidos.

A isto soma-se o outro aspecto acima referido que se prende com o tempo normal de emissão de um passaporte num dos muitos consulados, incluindo Macau (e não é por culpa do Dr. Paulo Cunha-Alves, como não era do esforçado Dr. Vítor Sereno), e que pode chegar a ascender a vários meses, período durante o qual uma pessoa se vê impedida de viajar. Salvo se pelo meio lhe “oferecerem” um passaporte de outro país. Também os há.

Acresce que em muitos países os emigrantes também não têm os consulados à porta de casa. Os transtornos e despesas provocados pela emissão desse documento passaram a ser mais frequentes, sem que daí advenha outro benefício ao Estado que não seja a maior sobrecarga dos já de si deficientes serviços que presta, e um, não menos despiciendo na perspectiva das finanças públicas, acréscimo de receita.

Seria importante que o Governo português, agora que voltou a ter alguma margem para pensar fora da “Geringonça” e antes das eleições legislativas, voltasse a este problema. E que se procurasse alargar o prazo de validade dos passaportes nacionais, se não for para os antigos dez anos, pelo menos para um período não inferior a oito, de maneira a minorar o transtorno que provoca o curto prazo de validade dos actuais. E ainda que isso representasse um custo proporcionalmente acrescido pela emissão por um prazo mais longo – para não prejudicar as contas do ministro Centeno –, o qual seria sempre menor do que aquele que é hoje provocado aos seus titulares residentes no estrangeiro.

2. Mais-Valias: Outro problema que aflige muitos dos nossos concidadãos prende-se com a forma desconsiderada como somos tratados pelo fisco português em matéria de mais-valias. Não sei se Vossa Excelência sabe que sendo nós residentes no estrangeiro acabamos por ser tratados pior do que se fôssemos reformados de luxo na Quinta do Lago. Imagine o caso de um casal, obrigado a mudar de vida e que saiu de Portugal para sobreviver e construir um futuro menos áspero do que o passado que lhes reservara. Estavam a pagar um apartamentozito T2 em Massamá quando emigraram. Graças ao seu trabalho conseguiram saldar as contas com o Banco ao fim de 5 anos. Entretanto, nascem dois filhos e o T2 no regresso será manifestamente insuficiente para a todos acomodar. Resolvem vendê-lo na esperança de reinvestirem as mais-valias na aquisição de um T4 com vista de mar para amenizar os seus dias de reforma. E o que lhes sucede? Não podem reinvestir e são tributados a 100% porque perderam a residência fiscal em Portugal. Como se fossem os directores reformados do banco francês ou alemão que se mudaram para Vale do Lobo graças à generosidade da CGD, S.A.. A tal que é de todos e agora usa as altas comissões que nos cobra pela manutenção das nossas contas bancárias e para guardar as nossas parcas transferências para honrar o espírito cristão e venturoso desse génio da gestão que é o Dr. Paulo Macedo. A sua visão também por aqui se vai fazendo sentir na pele do vetusto BNU, SA, que o meu saudoso amigo J.M. Braz-Gomes ajudou a erguer e prestigiar. Não penso sequer em ver melhorar as taxas de juros da banca nacional para os não-residentes sentirem um estímulo à poupança e transferência divisas para a pátria, mas alguma coisa deve poder ser feita. Que diabo, não somos titulares de golden visas, nem nos podemos dar ao luxo de ir ver o João Félix de 15 em 15 dias.

3. Língua Portuguesa nos Tribunais: Sei que este é um assunto que continua a ser acompanhado e em relação ao qual não poderá haver o mínimo descanso. Como professor de direito e constitucionalista, imagine o que é num processo judicial em que os advogados são já velhotes, nunca aprenderam chinês, o que jamais foi impeditivo do rigoroso exercício da profissão e da reconhecida utilidade pública dos seus serviços, com os articulados todos processados em português, começarem a receber despachos e sentenças de dezenas de páginas apenas com caracteres chineses e sem que os prazos parem para obtenção de traduções? Ninguém quer que os senhores juízes chineses se exprimam em português, não sendo essa a sua vontade. Mas não será possível essas decisões serem notificadas aos interessados – advogados e partes – numa língua oficial que dominem? Sei, por experiência, que alguns senhores magistrados do MP já o fazem, por vontade própria, no que só temos que agradecer-lhes a compreensão. Não haverá hipótese de sensibilizar os senhores juízes, que aliás só o foram por serem bilingues, para que se predisponham a determinar a notificação das decisões que proferem depois de traduzidas pela secretaria? Numa terra cheia de talentos (osgas há menos), e que ainda este ano ocupará o primeiro lugar PIB/per capita do mundo, não seria possível assegurar até 2049 o cumprimento integral da Declaração Conjunta Luso-Chinesa? É que o Presidente Xi Jinping é capaz de ser mais sensível a isto do que alguns dos nossos amigos locais.

4. Acordo Ortográfico: Por aqui o Acordo Ortográfico de 1990 continua a não ser usado. A começar pelo Boletim Oficial. Porém, a Escola Portuguesa segue-o. O Rui Rocha também, mas este sabe porquê. Pensa, e eu não o critico. E a juntar às dificuldades naturais do ensino e aprendizagem da língua temos a confusão instalada. Agora que já se viu que a Guiné-Equatorial nunca irá aprender português, porque a gramática se besuntou de petróleo, e que a Câmara dos Deputados do Brasil aprovou há dias um requerimento para discutir a sua revogação, não seria de elementar bom senso nos deixarmos de aventuras e pararmos um pouco para pensar antes de darmos cabo do que ainda resta de compreensível no nosso idioma? O Madurismo também acabará como o Muro de Berlim.

5. Consulado Geral: Não é tema novo. Importa, contudo, sempre a ele regressar. As condições em que nessa nossa casa se trabalha, e o que dela se retira é tanto motivo para nos sentirmos gratos pelo esforço dos nossos compatriotas que lá laboram como para nos envergonharmos pelas condições que lhes são oferecidas numa terra em que o custo de vida, basicamente alojamento e alimentação, são dos mais altos do mundo. O trabalho começado pelo anterior titular do posto, continuado hoje pelo sucessor, é notável. Todavia, como Vossa Excelência bem sabe, já lá vai o tempo em que os franciscanos milagravam. Agora limitam-se a atestar o depósito do carro para irem comer umas iscas a Évora e a darem uma mãozinha a uma Misericórdia ou a uma associação mutualista. Frutos da qualificação trazida a Portugal pela UE. Politiquices, digo eu.

Vou ficar-me por aqui. Não quero abusar da vossa generosidade. Já são muitas coisas para pensar e eu não quero que V. Exa. saia de Macau de relações esfriadas com o Dr. Augusto Santos Silva. Ou que atire o jornal como o outro atirou a garrafa de água vazia durante a entrevista.

Já bastam os nossos compatriotas que por aqui se incompatibilizam por questões de lana-caprina à volta dos bilhares ou das fotografias retocadas. Ou que amuam por causa da advocacia para pobres e menos ricos que alguns ainda praticam na esperança de que o reino dos Céus consiga acomodar os que pelo caminho não se perderem num lupanar qualquer entre as colunas de um templo da Praia Grande. Ou, quem sabe, oxalá que não, afogados no meio das acções tóxicas de uns tipos dos casinos.

Desejo-lhe uma boa estada e um final de viagem proveitoso. Os seus sucessos serão os nossos. Um regresso sereno. Que a República não lhe pese no sono como a outros lhes pesaram os quadros. E, ainda pesam, as patacas e a fiscalização da Declaração Conjunta Luso-Chinesa.

Descanse quanto possa para melhor pensar. Leia Pessanha, caso insone. A Órphão, o arquivo das confissões do Bernardo Vasques. Jornais locais se for a tempo. O IPOR que lhe envie o livro do Luís Melo. Ainda deve ter verba para isso. Irá gostar.

E ande de olhos bem abertos. Em especial, tenha cuidado com as “selfies” na Residência Consular.

Porque há por aí muitos pelintras, de nacionalidade duvidosa, que não se ensaiarão nada em se pendurarem no pescoço de Vossa Excelência na esperança de amealharem mais uns cobres com a sua generosidade fotogénica para abrilhantarem os investimentos que fazem com o dinheiro dos outros. Tal como tentaram com o Senhor Primeiro-Ministro e quiseram repetir, sem sucesso, com o Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Eu espero poder vê-lo. Ainda que ao longe, por causa do protocolo, dos penetras que empurram e da segurança. E prometo que ficarei mais silencioso do que nas reuniões do Conselho Pedagógico da FDL. Ou na nossa festa de finalistas. O que tinha a dizer-lhe, Senhor Presidente, fica aqui. Continuo a não saber falar destas coisas às escondidas e não sou de segredar nas sacristias. Para que o que interessa não corra o risco de se perder entre o sucesso dos papéis dos novos Albuquerques que correm airosos atrás das linhas de crédito da “Grande Baía das Faixas e das Rotas”. Além de que escuso depois de ter de andar a esclarecer por sms, um por um a cada um dos nossos compatriotas, se lhe transmiti as mensagens que me pediram.

Com a admiração e o respeito de sempre, queira aceitar, Senhor Presidente, não os triviais e formais cumprimentos e protestos; antes um abraço grato e fraterno, ainda frio da água do Guincho Norte, a única que nestas paragens, a nós, Cascalenses moçambicanos, nos consegue proteger os neurónios da humidade, dos cifrões, da piroseira dos neónes e do ardor que nos provocam os autocarros poluentes a abarrotar.

E que nos garante a lucidez da mente e a saúde dos olhos. Para olharmos para os olhos dos outros. Mesmo quando estes na sua pureza lacrimejam. Para os olhos dos que não lhe escrevem mas gostariam de poder fazê-lo, não sabem tirar “selfies” e ainda sonham com o dia em que comerão um arroz doce com muita canela e vista para o Tejo. Apenas confiando na bondade humana.

Sem sentirem que lhes estão a ir ao bolso. Em nome da Pátria. Num Primeiro de Maio.

Do cidadão,
Sérgio de Almeida Correia

Macau, 28 de Abril de 2019

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