Tempus fugit

[dropcap]H[/dropcap]á histórias que uma vez lidas nos perseguirão toda a vida. O seu significado é facilmente compreensível, mas desde logo percebemos que só quando a sua verdade se tornar experiência por nós vivida as haveremos de entender.

Poderiam estas histórias servir-nos de aviso, fossemos menos cépticos e displicentes, forma de nas idades da força e da razão nos imunizamos contra a assombração da morte. Somos descuidados com o tempo, substância que tardiamente aprenderemos ser escassa quando dela precisamos.

O conto “Papagaio de papel” de Lu Xun foi uma dessas combustões larvares à espera de oxigénio que a inflame. Assim que o li – não deveria ter mais de 20 anos – tocou-me nele a promessa de uma expiação que embora decifrável seria nessa altura ainda incorpórea. Vem numa colectânea que se pode intitular de “Erva selvagem” (野草) e tive-o numa amorável edição francesa da 10/18 que me foi roubada. Só me resta aqui em cima da mesa uma sofrível tradução em português, emasculada e murcha. Comprei o livro por ser chinês, pois andava à época com a cabeça cheia de chinesices.

Um velho sofre as agruras do Inverno e ao ver papagaios de papel a brincarem no céu azul de imediato o contrista o ferrão da memória. Recordou, então, que quando jovem – por conseguinte pretensioso – julgava os papagaios de papel um passatempo nefasto e frívolo, indigno de pessoas educadas. Assim proibira de os lançar o irmão mais novo, a quem eles maravilhavam os seus 10 anos. Um dia surpreendeu-o a construir um papagaio em segredo e num acesso de sanha virtuosa destruiu-o sem contemplações. Mais fraco e pequeno o benjamim limitou-se às lágrimas dos aviltados. Ao velho, deparando agora com o vôo dos papagaios, cometeu-lhe mágoa a súbita memória de acto tão cruel e prepotente. O único modo de se redimir seria pedir desculpa ao irmão. Este recebeu-o com um sorriso: “Isso aconteceu deveras?” – não se lembrava de nada…

O corolário de Lu Xun é ineludível. “Que perdão poderia haver? Sem ressentimento o perdão é uma mentira.” O velho retornou a casa sem alívio – aquela dor perduraria para sempre.

Às 11h do dia 16 deste Abril – “the cruelest month, […]mixing memory and desire, stirring dull roots with spring rain.” – deflagrou em mim o sentido do conto de Lu Xun. Também eu me apercebi do mal feito tarde de mais para que tivesse emenda.

Esse dia sentenciou que até ao fim haverei de carregar a desolação de não ter procurado arrependimento por certas patifarias em tempos perpetradas sobre a pessoa que num período da minha vida passada se me confiou e amou e a quem devia ter retribuído ou, ao menos, acalentado. As minuciosas degradações e deliberadas inclemências que executara vinte anos antes, já não tão jovem como isso, mas mais imaturo do que presumia e menos alumiado do que o meu convencimento admitia, não foram equívocos – eram maldades. Falhas de quem teve a felicidade ao alcance da mão e a desperdiçou.

Mas o pior veio depois. Arrefecidas as pulsões e amanhado algum siso, reconheceria como erradas as acções praticadas e atroz o desgosto que provocaram. Vendo o horizonte encurtar-se tal como o ancião de Lu Xun pressentiu nos papagaios de Inverno, sobrou-me então oportunidade de, tal como o velho, ter buscado redenção junto daquela que decerto ma concederia. Por desídia não o fiz. É verdade que se tornam alheios e distantes os caminhos que se apartam em rumos divergentes. E que as consumições são um rio de caudal incessante. Mas nada senão a vontade cedeu à procrastinação.

E assim foi que a morte rasurou o privilégio da compaixão. Esta pena jamais se confortará. Que adianta ter agora o coração nas mãos quando o outro já não bate?

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