O que a Notre Dame fez chorar!

[dropcap]C[/dropcap]om o incêndio da Notre Dame que pôs meio mundo a chorar (e a rememorar fotografias), lá se foi a tragédia de Moçambique. Depois veio a greve dos motoristas de matérias perigosas, o pessoal andou à pancada (até numa pacata bomba de gasolina de Campo de Ourique) e lá se dissipou o imenso pranto pela Île de la Cité. Parece que os media dão conta do que passa e não do que fica. Mas haverá algum tipo de registo que dê conta apenas do que fica? E o que é que fica, para além das lágrimas ao vento e das imagens parisienses (vento muito forte que seca todas as gárgulas que afloram no enfiamento das grandes comoções)?

Perseguir uma realidade perene e não efémera sempre foi desígnio (e desejo) dos humanos, é verdade. Aristóteles imaginou um mundo sobrelunar que resistiria à corruptibilidade, enquanto a “metempsicose” que Platão apresentou no Fedon traduz a ideia da imortalidade da alma e da reencarnação. As religiões do livro e as orientais (que se baseiam também na reencarnação) secundam a tradição. Os mitos, da antiguidade aos nossos dias, estão cheios de personagens que resistem à lei da morte. Até nas possíveis respostas ao famoso livro de Calvino “Porquê ler os clássicos?” ou no conceito de “cânone”, defendido por Harold Bloom, se pressente a mesma necessidade de resistir aos dons do efémero.

O mundo moderno, ciente de que os paraísos ‘só’ poderiam existir neste planeta, soube harmonizar habilmente a lei da vida (“A morte é a curva da estrada”, já dizia Pessoa) com um ímpeto de totalidade. Por outras palavras: os humanos acreditaram que haviam de domar o mundo e dar conta de tudo à sua volta. Para domesticar o tempo, nada melhor do que inventar uma ciência que radiografasse o passado e uma outra que ‘ideologizasse’ o futuro. Ficava tudo resolvido. É por isso que, a partir de meados do séc. XVIII, foram aparecendo narrativas que desenhavam, país a país, a sua própria história. Vico terá sido o anjo da anunciação (com Ciência Nova, 1725) e, logo a seguir, em todos os cantos da Europa, pôs-se em marcha um ininterrupto culto da memória, fosse através da criação de museus, fosse através da criação de novos saberes (arqueologia, antropologia, etnologia, etc.), fosse através da redacção de ‘Histórias’ nacionais e universais (com letra grande para sugerir a ilusão moderna de objectividade). De E. Gibbon (1737-1794) a A. Herculano (1810-1877) e de Marquês de Condorcet (1743-1794) a J.Michelet (1798-1874), os ‘grandes factos’ são desocultados e colocados em perspectiva, de modo a dar sentido ao presente e às comunidades que os enunciam, como se cada uma fosse o centro do mundo.

Este frisson de obsessivamente recriar o passado (cada qual a seu gosto) fez-se através de cuidadas montagens e selecções (as Tordesilhas da história portuguesa não seriam nunca as Tordesilhas da história castelhana, por exemplo), razão pela qual a objectividade – que ainda hoje permite que se creia na existência duma ciência histórica – é tão irrealista como o é o personagem que Borges criou em Funes o Memorioso*. Funes projectou uma nova língua que dispusesse de vocábulos para cada folha das árvores ou para cada pedra das montanhas, pois a sua memória era prodigiosa e abrangia todos os detalhes com que em vida se debatera. Como a tarefa era árdua, decidiu resumir o projecto a ‘apenas’ setenta mil lembranças. No final, desistiu por achar que o trabalho era infindável e inútil. Os historiadores foram mais inteligentes do que Funes, na medida em que recorreram a montagens subtis, antecipando-se à lógica das gramáticas com que Griffith e Eisenstein haveriam de glorificar o cinema.

Se as ideologias no seu design oitocentista são hoje matéria de manuscrito (com o é a Ilíada, por exemplo), este culto moderno e sistemático do passado foi-se perdendo no meio da amnésia colectiva que a era tecnológica arrastou consigo. Razão por que, hoje em dia, a representação do passado se faz mais através de práticas em fluxo centradas no que se passou a designar por “património” do que através da interiorização de uma determinada narrativa orgânica e saturada de coerências (como aconteceu na minha escola primária e nas aulas de história do liceu). Os objectos falantes – monumentos, sítios reconhecidos pela unesco, paisagens protegidas, etc. – são hoje o porta-voz dos nossos legados, daí terem-se convertido num turismo global de massas que mete a um canto as antigas peregrinações a Jerusalém.

É por esta razão que o incêndio da Notre Dame pôs o povo a chorar com glamour patrimonial. Juntemos a esse pesar os ingredientes fotográficos com que cada sofredor expôs ao cosmos a sua própria ópera interior. Quando no fim da Comuna de Paris, os derrotados pegaram fogo a meia Paris, ainda não existiam os sacos lacrimais da contemporaneidade. E ninguém, na altura, os teria entendido. Para os communards, a primeira internacional, as barbas cerradas de Marx e de Engels e o invasor prussiano eram as referências pesadas. O passado bem podia esperar nos mais-do-que-sagrados livros de ideologia e de “História” e ainda naqueles que levaram Adolphe Thiers a mandar executar mais de vinte mil almas (facto que a então jovem fotografia documentou sem quaisquer filtros e reservas, num contraste absoluto com a vacuidade narcísica e idiota das actuais selfies).

O empenho moderno pela “totalidade”, baseado em receitas racionais que dariam respostas a todas as ‘grandes’ perguntas, sucessor, aliás, do apego clássico pelas realidades perenes (com a imortalidade na fila da frente), é hoje um produto datado. Um genérico fora do prazo de qualquer prazo validade.

Esgotadas as crenças no ilimitado, o que nos sobrará? Pela frente, leia-se, como cenário de futuro, resta-nos o frémito dos gigabytes; para trás, leia-se, como cenário do passado, resta-nos a síndrome do património e os seus mil trivagos com direito a sorrisos e a selfies, tendo como cenário a acqua alta de S. Marcos, as cores avermelhadas da Petra jordana ou o pináculo da Notre Dame a cair no meio do fogo. De facto, tanto faz. E uma lagriminha no olho para coroar a emoção não ficará mal a ninguém, pois, logo a seguir a Paris, virá a greve dos motoristas e depois, e depois, e depois. Haverá sempre um depois para suster o que fica e para levar para o panteão, lado a lado, com Amália, tudo aquilo que passa, como se fosse, e é afinal, uma “estranha forma de vida”.


*Borges, Jorge Luis; Funes, el Memorioso em Ficciones – Prosa Completa, Volumen I, Narradores de Hoy – Bruguera, Barcelona (1944) 1980, pp. 383-390.

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