Da identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente

3. Portugal e a falta de solidariedade para com as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente

[dropcap]A[/dropcap] incapacidade de Portugal nesta matéria é uma evidência secular. Filha da ignorância e do preconceito, como atestam alguns exemplos que se registam de seguida e que ocorreram num intervalo de tempo pluri-secular:

O Bispo de Macau, D. Alexandre Pedrosa Guimarães, em carta ao Rei D. José I, de 22 de Dezembro de 1774, refere que as mulheres macaenses “falam uma linguagem, que é mistura de todos os idiomas e gírias, imperceptível aos que não são criados no país, por culpa dos maridos e pais de família, que há dois séculos não cuidaram em introduzir o idioma português correcto, sobre o que vou trabalhando, por ser esta coisa aquela em que cuidam todas as nações em seus domínios”.

José Joaquim Lopes de Lima, oficial de marinha e administrador colonial, governador de Timor que cedeu a ilha das Flores aos holandeses, no seu “Ensaios sobre a Statistica das Possessões Portuguesas no Ultramar..” (1844) dá uma pequena amostra da desconsideração e desrespeito nutrido em relação às Cristandades Crioulas e à língua por elas falada. No que respeita ao Crioulo de Cabo Verde, classificava-o de “gíria ridícula, composto monstruoso de antigo Portuguez, e das Linguas de Guiné, que aquelle povo tanto présa, e os mesmos brancos se comprazem a imitar”.

Em 1988, na qualidade de Presidente do Instituto Cultural de Macau, devidamente autorizado pelo Governador, transmiti ao Secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Albino Cleto, a disponibilidade do Governo de Macau em apoiar a ida de religiosos portugueses para a Missão de S José de Singapura e para a paróquia de S. Pedro de Malaca. Nessa altura já se encontravam retirados, por doença e velhice, os últimos padres portugueses enviados pelo Bispo de Macau.

Respondeu-me S. E. Reverendíssima – de um modo que me pareceu tocado de algum complexo colonial – que a iniciativa deveria partir do Arcebispo e Bispo respectivos. Sugeri que, ao menos, a Conferência Episcopal Portuguesa os convidasse para as comemorações do Centenário da Missionação e, nessa altura, se abordasse o assunto. Nem o Arcebispo de Singapura, nem o Bispo de Malaca estiveram nessas comemorações.

Em Janeiro de 1996, teve lugar em Malaca uma Conferência sobre “O Renascimento do Papiá-Cristão e o Desenvolvimento do Património Malaco-Português”, a que tive a honra de presidir, na qualidade de Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e a convite da respectiva Comissão Organizadora. Entre as comunicações apresentadas, abordaram-se temas da maior importância:

– as dificuldades que sobreviriam para os pescadores, representando 30% da Comunidade, em consequência dos planos de desenvolvimento local que previam extensos aterros, afastando o mar para longe das suas casas;

– o estudo, então em curso, para avaliação do número de falantes do Crioulo [Kristang] e das necessidades para o respectivo ensino, por inciativa do Dr. Mário Pinharanda Nunes, então leitor de português em Kuala Lumpur;

– o crescente interesse da população estudantil da Malásia, espelhado em teses versando a influência do Português sobre o Malaio e de docentes universitários daquele país empenhados em trabalhos de investigação sobre o Papiá-Cristão;

– a sumariação dos crioulos existentes no mundo, seus diferentes estatutos, intercâmbio dos seus falantes para troca de experiências, inventário das respectivas necessidades, modos de entreajuda e internacionalização desse património comum espalhado por vários países;

– a complexidade do sistema educativo da Malásia em que coexistem várias línguas e que permite a inclusão de qualquer idioma – incluindo o Papiá-Cristão e o Português padrão – mediante requerimento de quinze pais ou encarregados de educação.

Expressa ou implicitamente, os oradores apelaram ao apoio de “Portugal e das Fundações Portuguesas”. Estávamos no início do ano de 1996. Uma das dez conclusões da Conferência consistiu no pedido de avaliação das possibilidades de ligação das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente à Comunidade de Povos de Língua Portuguesa (CPLP). Outra propunha que Portugal viabilizasse a organização de um pavilhão das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente na EXPO 98.

Tudo foi transmitido ao Governo português pelos canais habituais. A primeira resposta recebida enviava o preçário de arrendamento dos pavilhões! Insistiu-se, através de nova diligência, procurando explicar melhor o sentido e alcance do que se pretendia. A resposta, ignorante, foi a de que cada Comunidade deveria diligenciar a sua inclusão nas representações dos respectivos países. Assim se encerrou definitivamente o assunto. A surdez, quando causada pela burrice, é mais irritante e cansativa…

Como me referiu o Arcebispo Emérito de Mandalay, na Birmânia, U Than Aung – descendente de portugueses – onde a maioria do clero católico é de origem portuguesa e cuja Comunidade tem as suas origens na cidade de Pegú no ano de 1600, quem nunca recebeu a mais ténue manifestação de solidariedade de Portugal nada tem a esperar daí.

Há de reconhecer-se que este Portugal do nosso tempo que esquece os “seus”, constrói Mesquitas, e anseia escancarar as suas portas às vítimas que sobrevivem à travessia do Mediterrâneo, padece de doença grave e, provavelmente, incurável, do foro psiquiátrico.

Os portugueses euro-asiáticos são originários das regiões costeiras do Índico e do Pacífico onde os portugueses europeus, africanos e de outras regiões da Ásia e da Oceania se estabeleceram e com cujos povos mantiveram relações duradouras, desde o século XVI. São católicos-romanos e falam um crioulo de base portuguesa.

Portugueses, da Índia e do Sri Lanka

Conferência em Malaca

Sob o título “RESSURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO PAPIÁ-CRISTÃO E DO PATRIMÓNIO MALACO-PORTUGUÊS”, reuniram-se em Malaca intelectuais e académicos, luso-descendentes de Malaca, malaios e de outros países, incluindo Portugal, no fim de semana de 6 e 7 de Janeiro de 1996.

A convite da Comissão Organizadora do encontro, liderada pela luso-descendente de Malaca Joan Margaret Marbeck, presidiu à Conferência o Dr. Jorge Morbey, Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Bangkok. Esta Embaixada, além de representar Portugal na Tailândia, assegura as relações diplomáticas com o Camboja, Laos, Malásia, Myanmar, Singapura e Vietname.

Na sessão de abertura, Joan Marbeck, falando em Papiá-Cristão e Inglês, agradeceu a presença dos convidados e os apoios recebidos de entidades de Malaca e do Instituto Português do Oriente, afirmando a dado passo que “na descoberta daquilo que nos distingue, temos de manejar elementos de identidade e de integração com o máximo cuidado. Não é nosso desejo sermos separatistas. Pelo contrário, desejamos empenharmo-nos no património colectivo com outras comunidades e, ao mesmo tempo, preservar os valores Kristang.”

Referindo-se concretamente ao estado actual do Papiá-Cristão que, de acordo com alguns linguistas está dando os seus últimos passos, afirmou dever preservar-se o sonho de consolidar a língua materna da sua Comunidade na Malásia plurilingue, pondo de parte ideias feitas e apostando no seu renascimento, através da formulação de um plano de acção em direcção ao ano 2000, a ser apresentado ao Primeiro-Ministro da Malásia, Dr. Mahatir Bin Mohamad.

A primeira comunicação foi apresentada por Gerard Fernandis, secretário do Conselho do Regedor do Bairro Português e assistente do Consul Honorário de Portugal em Kuala Lumpur. Chamou a atenção para as consequências dos planos de desenvolvimento em curso em que se prevê um vasto aterro na zona ribeirinha do Bairro Português de Malaca, afastando o mar para longe das casas dos pescadores que constituem ainda 30 % da Comunidade. A dado passo, afirmou:

“Aceitamos o desenvolvimento, mas não à custa do nosso bem-estar económico e cultural. O Estado, a Comunidade e os investidores têm de entender que é forçoso o crescimento da Comunidade a par do desenvolvimento e que os aspectos culturais têm de ser preservados”.

Para preservar o património português de Malaca, Gerard Fernandis apelou a “Portugal e às Fundações portuguesas”, enfatizando que a Religião Católica é o elemento aglutinador e identificador da Comunidade Kristang e que os elementos mais visíveis do seu património são o Papiá-Cristão, a música e a dança.

Intervindo a seguir, o Dr. Mário Pinharanda Nunes, leitor de Português na Universidade Malaya, em Kuala Lumpur, apresentou um conjunto de reflexões intituladas “Ressurgimento do Papiá-Cristão: Reflexões sobre como promover o renascimento do Papiá-Cristão em Malaca e em outras partes da Malásia”. Defendendo que o Leitorado pode desempenhar um papel importante no renascimento do Papiá-Cristão, deu testemunho da sua própria experiência pessoal que, ao ensino de línguas estrangeiras, se alargou ao interesse pelo Kristang e pelos Crioulos em geral. Opondo-se frontalmente à afirmação de que o Papiá-Cristão é já uma língua morta, o Dr. Pinharanda Nunes manifestou a convicção de que tal ideia resulta do menor número de Luso-descendentes de Malaca que o falam actualmente, em comparação com o que se passava nos decénios anteriores, à aparente perda de prestígio no conjunto das línguas faladas na Malásia – quando foi uma das principais durante a ocupação portuguesa e após ela – e ao desconhecimento da sua existência por parte de muitos malaios, mesmo daqueles que trabalham na área das línguas.

Sobre a situação actual do Papiá-Cristão, afirmou: “se por um lado o seu renascimento implica o crescimento do número dos seus falantes, o qual requer o seu ensino, por outro lado podemos entender por renascimento apenas atribuir-lhe um maior valor na opinião pública e difundir o conhecimento da sua existência”. Para a primeira hipótese, o Dr. Pinharanda Nunes sublinhou a necessidade de um mais exacto conhecimento do número de falantes, dos actos de fala em que o usam, com quem e com que frequência o falam, concluindo tornar-se necessário um trabalho de pesquisa, para avaliação do número de falantes e, assim, para avaliar a dimensão exacta da necessidade do ensino do Kristang.

Justificando a importância desse trabalho de investigação por se ter confrontado com números contraditórios sobre os falantes de Papiá-Cristão, o Dr. Pinharanda Nunes informou que elaborou um questionário para colheita dos dados entre as famílias Kristang, a realizar brevemente, e que os resultados e o respectivo relatório serão submetidos ao Conselho do Regedor e facultados a qualquer instituição malaia ou pessoa que o julgue útil para a definição de uma política de ensino do Papiá-Cristão.

Abordando em seguida a questão relativa à necessidade de materiais de ensino, referiu ser indispensável a normalização da ortografia do Papiá-Cristão, através da cooperação entre falantes locais e linguistas especializados na transcrição de línguas orais, para a fixação da sua ortografia oficial, à semelhança do que aconteceu com algumas das línguas do Sarawak..

(continua)

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