Crise de vegetarianismo

[dropcap]O[/dropcap]s problemas com o meu editor começaram desde o início da nossa relação. Não que ele fizesse mal o seu trabalho ou fosse mau tipo, era do melhor que conhecia. Um ser superior, com um conhecimento raro do vocabulário e da construção frásica. Uma cultura fora do normal, mas da verdadeira, aparada no estudo da História, da Filosofia e na percepção do Homem e dos seus cantos da alma, mas sobretudo por ser um indivíduo viajado, com os pés esfolados pelo mundo fora. E na Lua.

Tinha graves lacunas no meu estilo, na talhante forma de aglomerar frases e ideias desagregadas, órfãs de sentido. Por isso, precisava dele como pão e água. No fundo, acreditava em mim e nunca desistiu de esculpir a pedra, retirando o bruto e o supérfluo, deixando apenas a essência a brilhar, embora eu sentisse que a brutalidade das minhas palavras era o que resolvia a trama e, por si, davam conta do recado. Mas sentia que faltava alguma coisa e sabia que ele escrevia melhor do que eu. Por todas essas razões, refilava pouco e até só a um certo nível. O não evitava, no entanto, que as nossas discussões por dá cá aquela palha fossem frequentes. Às vezes bastava o número de páginas de um livro.

Sempre fui claro. Um dos eixos da nossa discórdia – afirmei-o logo na primeira conversa – foi quando lhe disse que ir a lançamentos de livros, a feiras e a folclores com o público, não era comigo. E ele chateava-se e gritava, esbracejando, dizendo-me barbaridades. Nesse ponto, eu era intransigente – nunca dei um milímetro a mais – e foi assim que aconteceu: mal aparecia. Quando surgia um romance uma compilação de contos ou de crónicas, ou aquelas coisas avulsas sempre que se aproximavam certas comemorações ou morria alguém, ele voltava a insistir e ordenava: “Tens de ir!” Às vezes eu até dizia que ia, só para não o ouvir mais. “Ok”. Mas depois não punha lá os pés.

Mas a questão da promoção resolvia-se bem, porque eu mandava sempre um substituto que vestia a minha pele. E às tantas, era tão grande a quantidade de gente diferente, de variadas origens e feitios, que os meus leitores se habituaram às minhas transfigurações e até me chamavam “o camaleão”. Acontecia também com entrevistas, sempre que os meus livros faziam algum furor, mesmo na televisão, por vezes em directo, não era eu que lá estava.

Gostava muito de mandar o Homem do Talho, figura eloquente do bairro adjacente ao meu. Confidente de velhinhas e de outras gentes de todas as idades e estratos sociais. Amigo do seu amigo e frequentador dos cafés e tascas, onde não se negava a beber um copinho a mais. Foi numas dessas ocasiões que o conheci e o abordei de imediato. Nestas coisas nunca se deve perder tempo. Aceitou de pronto quando lhe expliquei o que queria. “Vais ali às tantas horas e apresentas o meu livro, que é sobre isto e aquilo”. Contava-lhe um pouco do enredo, da formação das personagens e de como cheguei ao ponto de conseguir escrevê-lo e soltar aquilo tudo cá para fora. Depois de todos os esclarecimentos, ele tinha sempre as suas questões, eu rematava: “Diz o que te passar pelas ventas, não há problema. És tu, sou eu”.

E assim foi. Divertia-me a ler as entrevistas que dava, as poses estudadas que fazia para os fotógrafos, a aparecer nos ecrãs, a ser citado nos jornais e nas revistas literárias, a escorrer sobre a minha vida, cobrindo-a por completo, dos pés à cabeça. Falava sobre coisas que eu desconhecia que tinha feito, mas que a partir dali se tornavam parte da minha biografia e a complementavam. No final, voltava ao seu lugar, no Talho e a sua alegre vida retomava os quadris habituais, continuando como sempre tinha sido até ali.

O meu editor ia aos arames e saltava-lhe a tampa. Outra coisa não seria de esperar. Ligava-me a dizer que ia acabar com aquela farsa, que ia revelar a minha verdadeira face. Dizia “trombas”, a ver se me arreliava. Mas à medida que se irritava também se convencia do contrário, demovendo-se de fazer algo que pudesse contrariar as resenhas positivas que iam saindo sobre as obras e sobre mim, algumas até na imprensa cor-de-rosa. Como tal, o seu silêncio fazia com que o meu nome continuasse a ser falado, deixando correr o fluxo natural da minha crescente popularidade. Normalmente, o seu frenesi durava menos de uma semana e, como os livros vendiam bem, a fleuma acabava por se esbater por completo. Olhando para trás, posso afirmar com certeza que toda aquela encenação – fosse com quem fosse – resultava em pleno e dava os seus frutos. E no fim de tudo acabávamos a festejar o estratagema, do qual ele ao fim do segundo conhaque já se vangloriava, com noites de folia até altas horas da madrugada.

Isto, até que chegou o dia em que eu lhe disse que ia deixar de escrever, que tinha chegado ao fim e já não tinha mais nada para dizer. Aí é que foi! Deixou de me falar durante semanas. Atravessava a rua para o outro lado para não se cruzar comigo. Deixava-me mensagens ameaçadoras, a oferecer-me violência. Que ia dar cabo de mim. Que nunca mais me punha de pé. Mas depois lembrou-se do Homem do Talho e dos outros. E mais! De que eu, na verdade, não existia. Que apesar de todo o sucesso e dos milhares de livros vendidos, eu era fruto de uma série de circunstâncias que passavam muito pela sua função de editor e pelo seu vasto conhecimento literário.

Mas o que aconteceu foi que o Homem sem o seu Talho perdia toda a naturalidade. E a retórica que lhe era característica – que aos olhos do Editor tantas vezes me safou –, repleta de palavreado de rua que só ele dominava, esmoreceu a olhos vistos.

Foi então que o Homem do Talho, finalmente, deixou em definitivo o seu emprego e passou a correr o país inteiro como se fosse um cantor de salão de baile. Ao início, a coisa até correu bem. Com outro nome, apesar das parecenças que tinha com certas fases da minha inconstância camaleónica, o público aceitou-o com agrado, prendendo certo nicho de mercado. Vendia bem, e com boa cadência, em supermercados e charcutarias. Arrumado nos sacos de velhinhas e donas-de-casa, entre uma perna de borrego e um naco de alcatra, preenchia as necessidades dos lares. Um quilo de chambão. Uns pezinhos de porco ou uns pipis ao natural. “Só para picar!”

Mas o que aconteceu foi que o Homem sem o seu Talho perdia toda a naturalidade e a retórica que lhe era característica, que aos olhos do Editor tantas vezes me safou, repleta de palavreado de rua que só ele dominava, esmoreceu a olhos vistos. Eram as saudades de passar a mão por um pedaço de charolês, de escalar o lombo a um angus ou de perder uma tarde inteira a desossar um frango do campo. Com o bairro deixado à míngua e sem o fulgor do passado, dada a sua ausência, a partir dali não havia mais nada a fazer. O mecanismo trocou as suas voltas e acelerou um percurso descendente. E o papel de escritor, que gradualmente era acometido por depressões e vícios para as combater, já nem para embrulhar umas perninhas de rã servia. Passava as horas a olhar para catálogos e páginas na Internet cheios de picadoras de carne, formadoras de hambúrgueres, amaciadores de bifes e máquinas de vácuo. E, claro, a obsessão maior recaia nas facas e nos amoladores mais eficazes. Era uma vida triste.

O Editor ainda lhe deu um desconto e teve uma certa paciência, na esperança de algum milagre. Saía com ele, animava-o, punha-o a beber. Mas impaciente, como era seu hábito, depressa se fartou. E dali até o abandonar, deixando-o em absoluto enrolado à sua sorte, foi um tirinho. Nem uma dúzia de shots de tequila o conseguiu disfarçar.

Orgulhoso, de forte cepa transmontana, o Homem não foi capaz de regressar ao seu Talho. Nunca voltava atrás nas decisões que tomava. Em vez disso, a caminho de uma sessão de autógrafos numa bomba de gasolina, com pavor de que o próximo passo fosse tornar-se vegetariano – algo que ia contra os seus maiores princípios – e com o intento de se suicidar, atirou-se para uma trituradora ciclópica no matadouro clandestino de uns leitores amigos que o tentavam confortar. “Uma boa morte”, pensara momentos antes de dar o impulso final e misturar-se com a sua matéria prima de eleição: carcaças e miudezas. Pintos acabados de nascer. Ia feliz, poder-se-á supor. No dia seguinte, os hambúrgueres dos refeitórios escolares tiveram um sabor especial. Mas ninguém falou nisso. Ou não quis falar. Sabiam a resmas de papel.

Quando soube, o Editor já a tinha fisgada e não fez muito alarido. Ficou pasmado com a macabra ocorrência, claro, mas depois não pensou mais naquele homem. Em vez disso galgou para as costas do impostor que se seguia no filão da minha forjada biografia e continuou a sua senda. A galope.

Quanto a mim, se ainda querem saber, não abri mais a boca. Nem comi carne.

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