VozesDesiguais na lei João Luz - 8 Abr 2019 [dropcap]N[/dropcap]ão é preciso frequentar anfiteatros de faculdades para compreender que todos devemos ser iguais perante a lei. A imagem da justiça com olhos vendados representa esse ideal basilar de uma sociedade de direito. O século das luzes trouxe-nos o fim do privilégio hereditário, mas foi incapaz de aniquilar a vassalagem ao dinheiro e ao poder. De certa forma, estes são resquícios da tutelagem de que falava Kant, auto-imposta e permitida, que envenena justiça, equidade e igualdade aos olhos da lei. Uma enorme revolta cresce dentro de mim sempre que testemunho a força dos códigos penais a dilacerar um cidadão normal, que não se passeia pelas alamedas da fortuna e do poder, enquanto os senhores passam entre as gotas da chuva legal. Não me interpretem mal, não defendo a prática de crimes, apenas gostava de ver as regras serem aplicadas a todos de forma igual. Raramente um sistema judicial consegue condenar um poderoso, um ultra-rico, e a injustiça fica ali, a pavonear-se imune, aos olhos de todos, protegida em minudências legais, em subterfúgios protectores. Fica um travo a tirania medieval na boca. Quando lemos o relatório do CCAC e as suas curiosas e quase cómicas infrações, quando vemos grandes bancos a lavar dinheiro para os carteis de droga mexicanos e redes de terroristas sem que ninguém vá preso um dia sequer, quando assistimos, boquiabertos, ao desplante com que legisladores tecem leis em seu favor, é quase impossível conter a náusea cívica. Recordo que também que na discussão das leis da extradição em Hong Kong, o dinheiro falou ao ouvido do poder político eliminando os crimes de colarinho branco da lista de ofensas, por esta lei poder afectar a reputação do mundo dos negócios da região vizinha. Quão perversa é esta lógica?! Um sector decide excluir os crimes que pratica de uma lei em nome da sua boa reputação. Numa dimensão macro, na sequência do crash de Wall Street que arrastou a economia mundial para uma das maiores crises de que há memória na história recente, expondo a incestuosa ligação entre banca privada e Estado, não só as empresas que se comportaram como sindicatos de crime foram salvas com dinheiro público, como os seus CEOs foram recompensados com chorudos bónus. Criticar este sistema, ainda hoje, é o equivalente ao mais bárbaro acto de radicalismo, aos olhos da sabedoria saloia que protege esta estrutura de poder. Como é óbvio, esta realidade está longe de ser exclusiva de Macau. Aliás, estes exemplos ultrapassam em larga escala as derrapagens em obras públicas e a incompetência, para ser simpático, na gestão de pastas como Metro Ligeiro e Terminal da Taipa. Mas, convenhamos, a desigualdade perante a lei e o compadrio são por cá celebrados com peculiar entusiasmo. O poder oferece à população migalhas de justiça, pequenos e simbólicos processos para mostrar serviço e dar a aparência de legalidade. Punem-se os quadros médios, os pequenos delinquentes e os chefes que não têm costas quentes e que foram demasiado evidentes nas falcatruas praticadas. Entretanto, as relações privilegiadas que nascem do acasalamento entre indústria e política, com laços familiares à mistura, prosseguem os seus desígnios acima da lei. A crise global financeira de 2007/2008 trouxe-nos dois conceitos perversos e contrários ao Estado de Direito: “Too big to fail” e “Too big to jail”. O primeiro remete-nos para a importância sistémica de um actor que, apesar de agir em total desrespeito pela decência e legalidade, se afigura como fundamental para a estabilidade do sistema. O segundo, ainda mais nauseante, retrata a dimensão de um indivíduo ou instituição que lhe concede um lugar à margem das regras que os comuns mortais estão obrigados a respeitar. Por aqui, temos o conceito de famílias tradicionais, as elites que herdam os tronos económicos e políticos à nascença e que pairam acima da cidade, acima do comum cidadão. Tomam decisões que favorecem os seus próprios interesses com toda a tranquilidade, sem grande alarido. Escrevem e aprovam diplomas legais em seu benefício ou que, pelo menos, não os prejudicam. Adjudicam obras uns aos outros, como se fosse uma função biológica. Um pouco por todo o mundo, com diferentes graus de promiscuidade, as leis regem a vida daqueles que não lhes podem escapar. O princípio da igualdade perante a lei encerra em si o que demais mais elevado temos na organização social contemporânea. Já a sua aplicação, subjectiva e sujeita às falhas humanas, nega esse mesmo desígnio.