Moçambique | Ciclone Idai poderá ter provocado mais de mil mortos

Um dos piores ciclones tropicais que assolaram o continente africano deixou um rasto de destruição no Malaui, África do Sul, mas, em particular, Moçambique. A cidade da Beira ficou completamente arrasada, deixando em perigo a vida de mais de 100 mil pessoas. Além dos salvamentos imediatos, Moçambique terá de lidar com a abertura das comportas de barragens, o perigo de epidemias e a falta de capacidade de resposta. Em Macau preparam-se campanhas de solidariedade

[dropcap]”[/dropcap]São momentos de dor. Tenho acompanhado as imagens e o drama que as pessoas estão a passar. São aldeias inteiras isoladas, sem comunicação com o resto do país, uma aflição. Neste momento, ainda nem é possível contabilizar as mortes devido ao isolamento”. É assim que Rafael Custódio Marques, cônsul-geral de Moçambique em Macau, descreveu ao HM a forma como tem vivido a tragédia que assola o seu país, que está em luto nacional até amanhã.

Em declarações à nação, o Presidente da República Filipe Nyusi apontou para uma contabilidade trágica de mais de mil mortos na sequência da devastação provocada pelo ciclone Idai. Ainda assim, entende-se que o número pode ser uma estimativa conservadora. A partir de Macau prepara-se uma resposta conjunta do Consulado-Geral de Moçambique em Macau e da Associação dos Amigos de Moçambique. Entre hoje e amanhã, está prevista a abertura de uma conta bancária para receber donativos e vão ser estabelecidos contactos institucionais para contribuições solidárias.

As províncias mais afectadas são Sofala, em particular a zona da cidade da Beira e Manica.

“Foram três dias e noites que ficámos em cima de uma árvore”, relatou à Rádio Moçambique um residente de Dombe, povoação a cerca de 30 quilómetros do Zimbabué, na província de Manica. A comunidade rural fica a cerca de 150 quilómetros em linha recta da cidade da Beira, a mais afectada pelo ciclone.

A distância ilustra o caminho percorrido pela tempestade, que semeou destruição de uma ponta à outra do centro de Moçambique. Entre domingo e terça-feira, a policial fluvial de Dombe recolheu 11 corpos do rio Lucite e estimou ter salvo mais de 100 das cheias naquelas margens e nas de outros cursos de água da região, muitas amparadas pela vegetação.

Os residentes que se salvaram contaram ter enfrentado fome e frio, depois de uma fuga à subida dos caudais que não lhes deixou outro caminho senão procurar o sítio mais alto. “Fomos e subimos à árvore, durante dois dias”, referiu outro residente de um grupo que inclui famílias inteiras e que relatou o que passou. “Muitas pessoas morreram”, uns levados pela corrente, “outros com frio”, por não conseguirem sair totalmente da água enquanto esperavam por socorro, fosse em cima de árvores ou do tecto de escolas junto ao rio Lucite.

A subida de nível dos rios continua a ser uma ameaça às comunidades rurais das províncias de Manica e Sofala, à chuva forte que caiu até ontem, aliadas às descargas de barragens que se encontram no limite da capacidade.

Abraço de Macau

Por cá, está em curso uma campanha de solidariedade para atenuar o sofrimento vivido em Moçambique. “Vamos abrir uma conta bancária para que as pessoas que queiram apoiar os amigos de Moçambique possam dar a sua contribuição”, revela Helena Brandão, presidente da Associação dos Amigos de Moçambique. Para já, estão a ser feitos contactos com organizações a trabalhar no terreno e com instituições de Macau para reunir apoios, em coordenação com a representação consular.

Por seu lado, o cônsul-geral de Moçambique em Macau, Rafael Custódio Marques garante que vai solicitar apoio a instituições locais. “Está nos nossos planos fazer esse apelo massivo aqui em Macau”, revela o cônsul-geral adiantando que primeiro é preciso criar uma base organizada para que quem queira ajudar saiba para onde dirigir os seus apoios.

Helena Brandão tem acompanhado de longe a tragédia provocada pelo Idai, mas com o coração perto da cidade da Beira. “Foi lá que fiz os meus estudos secundários, foi lá que casei e nasceu a minha filha. Tenho na Beira familiares e amigos.” A dirigente associativa recorda que “apesar das lindíssimas praias e paisagens, a Beira está situada abaixo do nível médio da água do mar. Portanto, qualquer tempestade, mesmo que seja uma chuva de algumas horas é suficiente para alagar tudo”.

Um total de 40 toneladas de alimentos estão a caminho do aeroporto da cidade da Beira para serem distribuídos pela região, disse ontem à Lusa a representante do Programa Alimentar Mundial (PAM) no país. Um avião com 22 toneladas aterrou no domingo “e há outro a caminho com mais 40 toneladas”, referiu Karin Manente, que aguarda pelo descarregamento dentro de “dois a três dias”.

Um dos objectivos é alimentar a população que continua isolada nas zonas alagadas pelas cheias, bem como atender a carências na província de Manica, onde a Lusa visitou um centro de abrigo no qual os beneficiários, entre os quais muitas crianças, se queixaram de falta de comida.

O PAM distribuiu ontem 4,2 toneladas de biscoitos enriquecidos, por via aérea, a quem aguarda salvamento para zonas seguras. “Ainda há populações isoladas”, em número indeterminado, referiu Karin Manente, apesar das acções de salvamento em curso diariamente com helicópteros e embarcações.

Autoridades sul-africanas que apoiam as operações salvaram ontem, só com as suas viagens de helicóptero, 40 pessoas da zona de Buzi, sobretudo mulheres e crianças. Muitas tiveram de deixar outros membros da família para trás, enquanto os helicópteros tentam dar prioridade aos casos mais urgentes.

Há mais pessoas a serem salvas graças a várias organizações envolvidas nas operações, mas o número total de resgates ainda não está consolidado, acrescentou. Pelo menos seis helicópteros estão ao serviço na região (quatro da África do Sul, um do PAM e outro das autoridades moçambicanas) e há expectativa de mais se juntarem às operações.

Resposta à natureza

“A prioridade neste momento é salvar vidas, porque há populações isoladas. Depois é preciso mobilizar alimentação. Há quem tenha perdido tudo, porque as águas carregaram tudo e só ficaram elas próprias”, aponta Rafael Custódio Marques. O representante consular chama a atenção para o facto de as chuvas não estarem a cair com intensidade apenas em Moçambique, mas também no vizinho Zimbábue, o que levará à abertura das comportas de barragens. “Nós estamos a jusante, deve imaginar os cursos de água cá para baixo. É outra catástrofe eminente. Por outro lado, os efeitos pós-cheias podem levar a epidemias.”

A força dos ventos na cidade da Beira foi de tal ordem que os aviões estacionados nos hangares do Aeroporto Internacional da Beira capotaram. Outro perigo vindo dos céus foram as incontáveis chapas de zinco que voaram das construções precárias que constituíam parte significativa da cidade.

Face a uma calamidade de proporções bíblicas como o ciclone Idai, agigantam-se as dificuldades para responder com eficácia, principalmente num país como Moçambique. “Nada é tratado de forma estrutural, sopesando os estragos anteriores e pensando na prevenção do futuro. Disseram-me na terça-feira que o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades não tem sequer um Hospital de Campanha. Este ciclone foi anunciado com vários dias de antecedência e o Governo fez “um alerta vermelho”, mas limitou-se a declarar a coisa. Porquê, não sei, julgo que por inércia e inconsciência”, conta António Cabrita, escritor e residente em Maputo. O autor conta ter almoçado com um governante natural da Beira, e que tem família na cidade, que lhe disse que “a coisa estava mal, mas sem acusar uma excessiva apreensão.”

Depois da visita do Presidente da República à região, o Conselho de Ministros mudou-se para a Beira.

“Quanto mais me informo mais percebo que é um daqueles desastres que ultrapassa a capacidade de qualquer Governo, ainda para mais de um país pobre e já mergulhado numa crise profunda”, remata António Cabrita.

Arregaçar mangas

Noventa por cento da área em torno da cidade da Beira foi destruída, as estradas principais de acesso à cidade foram cortadas, muitos edifícios ficaram submersos, não há electricidade em toda a região e praticamente todas as linhas de comunicação foram destruídas, o que torna muito difícil aceder à dimensão correcta do desastre, segundo a organização Médicos Sem Fronteiras. Na região da Beira, o número de portugueses residentes registados no consulado de Portugal na capital da província de Sofala aproxima-se dos 2500.

O secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, é esperado na cidade moçambicana da Beira, onde dezenas de portugueses perderam casas e bens, para acompanhar o levantamento das necessidades e o primeiro apoio.

No grupo que partiu de Lisboa, além do governante, estão elementos da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e do Instituto Camões. “O objectivo da missão é realizar um diagnóstico tão rigoroso quanto possível sobre as condições da comunidade portuguesa em Moçambique, nomeadamente na região da Beira. Estamos a falar de uma região e de uma jurisdição consular que corresponde a toda a Península Ibérica, que se encontra sem comunicações nesta altura”, disse José Luís Carneiro, em declarações à agência Lusa.

O secretário de Estado explicou que, entre amanhã e sábado, se vão juntar à equipa elementos do Ministério do Ambiente, responsáveis com “possibilidade de agilizar mecanismos na área da saúde” e também uma “equipa reforçada da Direcção-Geral dos Assuntos Consulares, com funções consulares e diplomáticas”. Em relação aos portugueses, o secretário de Estado reafirmou que não tem informações de vítimas mortais ou desaparecidos, mas frisou que ainda é cedo para dar garantias.

Para já, a mobilização para ajudar Moçambique a reerguer-se e evitar mais mortes é a prioridade máxima, de forma a mostrar que há vida depois do ciclone Idai.

Carta de Mia Couto

“Meu caro, obrigado pela mensagem. Na verdade, estou eu quase tão destruído quanto a minha cidade. Estava determinado a ir para a Beira para mergulhar no espírito do lugar e agora, segundo me dizem, quase não há lugar. É como se me tivessem arrancado parte da infância. O Zeferino, logo na sua primeira avaliação, me tinha alertado que a Beira era a personagem central do livro. Confesso que estou meio perdido. Esta manhã recebi fotografias da igreja do Macuti que está em ruínas. Aquele edifício está profundamente dentro da minha história. É como se estivesse a escrever a história de um amigo que, entretanto, morresse. E o problema é bem maior que a Beira. Todo o centro de Moçambique está por baixo de água: estradas, casas, torres de energia e de telecomunicações estão destruídas. Não consigo saber dos meus amigos que vivem na Beira. Enfim, sabe bem esse seu abraço.” Mia

Contas solidárias

O BNU Macau abriu três contas “em solidariedade com a população de Moçambique afectada pelo ciclone tropical Idai” para ajudar as vítimas do desastre natural. O número da conta em patacas é 9015805031. A conta em euros é 9015805048. A conta em dólares norte-americanos é 9015805065.

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