Biologias I

[dropcap]A[/dropcap]s disciplinas contemporâneas “biologia” e “zoologia” visam a vida. A biologia estuda a vida e os organismos vivos. Comporta em si diversos campos de investigação. A zoologia faz parte da biologia e estuda a vida animal. De qualquer modo, o acrescento “-logia” tal como noutras palavras: teologia, filologia, antropologia, significa disciplina científica. Portanto, há um suporte teórico e um modelo cognitivo de acesso a objecto específico pertencente a cada disciplina. Ainda: percebe-se que há ramificações e especificações em cada disciplina ao ponto de se poder pensar no plural: biologias e zoologias. Não se pretende reivindicar os termos “biologia” e “zoologia” para novas ciências ou novas concepções da vida em geral, humana e animal. Pretende-se, antes, procurar perceber o que na antiguidade estava em causa quando se falava de “bios” ou de “zôê”.

 

Muitas vezes, o que quer que os antigos visassem com o termo “bios” e “zôê”, ambos tinham o mesmo referente. Tal pode ser percebido quando verificamos a expressão “bios te kai zôê” (a existência tal como a vida) em Aristóteles. A hendíade reforça um único campo de investigação, ainda que com duas expressões diferentes. Mas mais. Parece haver uma troca de referente ou campos semânticos. Às vezes, o que parece ser visado segundo uma designação, noutras circunstâncias, parece ser visado pela outra. Por um lado, “bios” parece ter o sentido de “zôê”. Por outro, “bios” e “zôê” têm sentidos diferentes, ainda que se complementem.

Mas vamos por partes.

 

Aristóteles, na Ética a Nicómaco, distingue formas de vida ou horizontes “zoóticos”, para poder identificar a que diz propriamente respeito à existência humana. Primeiro, identifica uma dimensão que nós, humanos, partilhamos com animais mas também com vegetais. A nossa capacidade de assimilar nutrientes e de crescer é comum ao reino animal e ao reino vegetal. Cresce-nos o cabelo e as unhas. Aumentamos de tamanho desde a mais tenra idade. Desenvolvemo-nos até à idade adulta. Definhamos, envelhecemos. Morremos. A vida manifesta-se no seu sentido vegetal mais próprio na capacidade de processar alimentos, nutritivos, sólidos e líquidos, de os ingerir, digerir, assimilar. Nós e os animais e os vegetais. Aqui, não há diferença alguma entre a vida humana enquanto horizonte zoótico e os reinos animal e vegetal. Sem dúvida que há diferença no modo como nos acercamos dos nutrientes, os seleccionamos e segregamos. A planta de modo diferente dos animais. Os animais de um modo diferente do ser humano. Mas a “dieta” e o “regime alimentar” sempre foram objectos de estudo desde a antiguidade e encontra-se mesmo fixada nos textos mais antigos do pensamento ocidental.

 

O segundo estrato zoótico, se assim lhe pudermos chamar, é o da vida sensitiva ou perceptiva. Há textos em que Aristóteles exclui o reino vegetal da possibilidade de ter percepção. Outros há que o inclui. O reino animal partilha da possibilidade humana de ter capacidades perceptiva ou sensorial. Mas como é que uma planta pode ter percepção? Para Aristóteles, o facto de absorver água e os seus nutrientes e mesmo a necessidade de luz para a sobrevivência indicam, mais do que simbolicamente, a possiblidade de as plantas serem “sensíveis” ao meio ambiente. De resto, o modo como Aristóteles via a morfologia de uma planta por analogia com um animal não deixa de nos deixar perplexos do mesmo modo que nos permite compreender o que ele tem em mente. Diz Aristóteles, no De Anima, que a planta está de pernas para o ar, com o que corresponde, analogamente, à cabeça de uma animal enterrado na terra. Os seres animais, como os seres humanos, alimentam-se pela boca, normalmente, situada na cabeça. Assim, também uma planta. Só que a planta está de pernas para o ar e com a cabeça enterrada na terra. Podemos argumentar que o girassol parece ter a cabeça virada para o sol e, assim, gira orientado pelo movimento que o sol parece esboçar-se. Ainda assim, percebe-se que a terra dá nutrientes e a fotossíntese é uma realidade. Por outro lado, seres humanos e animais partilham de uma capacidade mais sofisticada de percepção, de locomoção, de reprodução e conservação, defesa, protecção e caça. A visão parece ser partilhada pelo cavalo, o boi e o ser vivo. Todavia, vemos de maneiras diferentes a mesma coisa. Podemos até reconhecer uma capacidade de visão ao falcão que nunca teremos. O mesmo com o olfacto do cão, etc. etc..

 

O horizonte zoótico que é próprio do ser humano, segundo Aristóteles, e não é partilhado por nenhum ser vivo nem ser vegetal, é o prático ou pragmático. Se quisermos, os humanos podem “existir” e a vida humana acontece na existência. Mas a vida animal e a vegetal, embora estando na realidade e na vida, nunca poderão existir. Uma planta está junto de outra. Pode até ser enxertada noutra. Mas nunca conviverão. Um animal pode conviver com outro animal, mas não existirá como cidadão num mesmo estado. “Ser um com outro” é uma expressão reservada ao ser humano. Só o ser humano existe com outro na polis, tem história e antecipa futuro. A zôê praktikê de que fala Aristóteles designa o horizonte específico do ser humano, mas, ainda assim, não capta a característica fundamental do bios.

O bios quer dizer a existência humana enquanto cronologicamente constituída: o tempo finito ou crónico, a distribuição da existência por tempo sido, tempo ser e futuro a haver, aspirações e desejos, conquistas e perdas, ambições e frustrações. Para os gregos, o bios mais do que um horizonte da cronologia que nos é loteada, é o resultado de uma escolha em que cada um pode ser de um determinado modo e ter um modo de vida.

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