Elenchos: passar vergonhas e submeter a tratos

[dropcap]A[/dropcap]filosofia é uma obsessão compulsiva com a transparência. É uma paixão. É uma forma de erôs. Pode acontecer a partir de episódios de espanto em situações extraordinárias. O maior espanto é de segunda ordem: um espanto com a ausência de espanto, o que quer dizer que a trivialidade causa espanto por si, porque torna trivial o que não é trivial, o facto de as coisas serem em alternativa a não serem e serem precisamente como são e não de outra maneira. A filosofia é método: modo de fazer o caminho, viajar, fazer uma jornada. Não é uma deslocação. É uma mutação em que nada fica na mesma, ainda que a força do quotidiano e da atitude natural se possa sobrepor às paisagens visitadas.

Muitas das palavras usadas pelos filósofos para descrever o seu método estão pejadas de violência. Na famosa alegoria da caverna de Platão, onde se encontram os humanos, prisioneiros das sombras, aquele ser humano excepcional que vê a luz passa faz uma experiência violenta, aparentemente contra a sua vontade, de uma forma inesperada. Ele é agarrado, empurrado e puxado para cima. Da posição de sentado é atirado para a superfície do poço em que se encontra. Lembro-me como na Florida num campo de diversões fui arremessado, sentado numa cadeira, para o alto, uma centena de metros: da escuridão de uma sala para o dia de sol sob a abóbada celeste. Na verdade, fui puxado e empurrado. Não sabia ao que ia, como o prisioneiro. Muda o quadro da situação, muda o plano de fundo da escuridão, da noite, do interior, para a luz, o dia, o exterior. E, ainda assim, terá de voltar para o interior, para o fundo, para a escuridão, porque tem de regressar para os seus e tem de contar o que viu. Comunicar não é apenas informar, por mais meritório que seja. A comunicação é constitutiva do ser humano. Mais do que uma forma de expressão é a possibilidade não anulável de aproximação ao outro, de neutralização da solidão. Mas do mesmo modo que custa ouvir as verdades também aos outros custa escutá-las. Custa tanto que podemos nem sequer perceber do que se trata.

As palavras como procura, inquérito, processo denunciam, por outro lado, a linguagem jurídica que perpassa toda a história da filosofia. A abertura de inquérito, contudo, nem sempre é pensada num estado democrático com boas práticas cheias de humanidade. Na verdade, a prova de fogo ou a pedra de toque são os critérios que os antigos usavam não apenas para testar metais, designadamente o ouro. Mas, se o inquérito for policial, os métodos antigos não são ortodoxos. São a violência pura da tortura. O elenchos (refutação) e o basanos (pedra de toque) são os operadores utilizados para o apuramento da verdade.

Em parte, pode perceber-se que a interrogação se pode fazer às cegas, sem ter nada de concreto. Por outro lado, o inquérito é como um interrogatório a que se submete alguém. Mas somos nós que nos submetemos a um interrogatório, sem sabe bem a que chegaremos, e, de facto, submetemo-nos a um interrogatório de um modo violento, submetemo-nos a tratos. o elenchos quer dizer argumento que visa a refutação, uma redução ao absurdo. Não se trata de uma prova por defesa mas uma acusação que visa a descredibilização de alguém ou da opinião de alguém, visa dizer que a opinião de alguém é infundada e que alguém não é digno de crédito. Uma vez mais, se nós formos o sujeito submetido a inquérito tal quererá dizer que não somos dignos de crédito e que as nossas opiniões são infundadas, quando achamos exactamente o contrário: que somos dignos de crédito e que as nossas opiniões são oraculares. O exame cruzado, o teste, a submissão a escrutínio implica precisamente uma forma de pensar que sai verdadeiramente de si. Pensar por si não é apenas pensar para si. Pensar por si desvincula-nos do alto conceito que temos de nós e põe-nos em questão, põe problemas ao que pensamos, faz-nos perguntar sobre se o que pensamos é fundado ou não, obriga-nos a dar conta da nossa própria vida e em última análise dá-nos a oportunidade de nos retratar. Por outro lado, temos de fazer prova primeiro contrária do que achamos saber e depois para defender o que achamos que é uma opinião saudável. Tal como num processo judicial do ponto de vista da acusação, temos de fazer prova que leve à condenação do arguido. A defesa procurará provar a inocência. A condenação e a inocência dependem do processo judicial que o júri avaliará para ditar a sentença. Mas o arguido, o réu, o condenado e o absolvido, a acusação e a defesa e o próprio júri são a mesma pessoa. A filosofia age em prol da verdade do ponto de vista da acusação. Procura mostrar que tudo o que sabemos assenta num julgar que se sabe. Julgar é apenas subjectivo. O saber pode depender inteiramente desse julgamento opinativo e nada ter que ver com a verdade. Julgar saber é privado, subjectivo, e não pode ter pretensão de verdade, quando a tem em absoluto. Mas como submeter tudo a exame? São todas as nossas opiniões de um ponto de vista teórico?

A palavra elenchos quer também dizer passar por uma vergonha, passar por um vexame. Tal quer dizer que se trata de uma experiência violenta, extraordinária, excepcional, eventualmente episódica. Significa que o que fazemos é mal feito, do ponto de vista moral, psicológico, atenta contra a nossa integridade física, psíquica e pessoal. Mas ao passarmos por um vexame somos postos em causa, por termos feito qualquer coisa às escondidas, que não queríamos que se soubesse que a tínhamos feito, e é denunciada, somos apanhados em falso. A forma: fazer em privado qualquer coisa às escondidas, em que não queremos ser apanhados, e seremos denunciados é a forma da vergonha, do atentado ao pudor, do vexame. Não é qualquer coisa pela qual gostaríamos de passar. Era a última coisa que queríamos que se soubesse independentemente da sua causa ser moral, psicológica ou o modo como avaliamos pessoalmente quem nós somos e o que fizemos. Mas uma coisa é passarmos involuntariamente por uma vergonha e outra coisa é queremos passar por uma vergonha, confessarmos à última pessoa a quem queríamos confessar a única coisa que fizemos e não queríamos que ninguém soubesse. É justamente aqui que a filosofia encontra o seu método. Como se tivéssemos cometido um crime e fossemos rapidamente à polícia para nos confessarmos e sermos julgados o mais depressa possível, para sermos condenados e assim purgados desse crime. O crime na filosofia é a opinião, termos uma opinião que não sabemos de quem é autoria, sermos o resultado de preconceitos, vivermos pejados de preconceitos contra os outros, contra as coisas, contra nós próprios.

É preciso uma prova de fogo ou como os antigos diziam um basanos, uma pedra de toque para identificar o ouro. Quando passado o ouro por essa pedra, nela ficava uma linha amarela que indiciava que o metal não era falso mas era ouro. Do sentido literal do termo ficou um sentido figurado: teste, tentativa de verificação da autenticidade ou da genuinidade de qualquer coisa ou de um testemunho. Era também a palavra em Atenas para tortura que visava extorquir evidências a escravos, para testemunharem contra os seus senhores. Aqui, somos nós que nos submetemos a tratos, à tortura violenta que nos leva a abrir mãos dos nossos preconceitos, dos juízos prévios e irreflectidos, tudo o que nos envergonha, tudo o que é ignóbil, tudo o que nos desonra e nos deixa seres menores ou desprezíveis ainda que só aos nossos olhos.

E para quê? A hipótese que nos lança neste projecto é-nos imposta tal como o espanto, numa primeira instância. Mas pode constituir-se em necessidade intrínseca, como um modo de vida, como a maneira de fazermos caminho. Não há caminhos sem nos fazermos ao caminho. O caminho faz-se andando. Tal como o método para os antigos. Saber é fazer. Saber é explicar. Na mais longa viagem que é a nossa vida, na jornada terrível e admirável que temos cada vez mais curta pela frente, o real é menos do que o possível, o sonho é maior do que a realidade concreta, mas a possibilidade remete para a realidade como o sonho para a vigília. E vice versa. A escuridão define-se relativamente à luminosidade, a noite para o dia, a morte para a vida. Nada do que nos acontece está fora do horizonte aberto, irreversível, mutante da vida continuamente a deixar de ser. Nenhuma opinião é fora deste contexto. O que achamos que é para sempre é caduco, quem nós achamos que não desaparece nunca está a deixar de ser. Também nós não percebemos o ridículo das nossas opiniões e do nosso saber. E também saber que é ridículo o que sabemos e que é ridículo repeti-lo é uma forma de passar pelo vexame e pela vergonha de ousar submeter-nos a tratos para passar vergonhas.

Mas o longe é possível assim, somente.

 

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