Mark O´Neill, jornalista e escritor: “É um momento histórico para aqui estarmos”

Mark O´Neill está em Hong Kong desde 1978 onde trabalha como jornalista e escritor. Apaixonado pela história da China, onde também trabalhou, tem agora oito livros editados, um deles dedicado a individualidades chinesas que marcaram a história de Macau: “Pioneers Of Macao – The Story Of 14 Chinese Who Helped To Make The City”. Ao HM, falou da cobertura dos protestos de Tiananmen em 1989, das mudanças a que tem assistido no país e das memórias deixadas pelo seu avô

[dropcap]E[/dropcap]stá no Oriente desde 1978. Que razões o levaram a vir para cá?
O meu avô viveu numa província no nordeste chinês entre 1897 e 1942. O meu pai ainda ali viveu durante seis anos. Quando era criança ele contou-me histórias sobre a vida na Manchúria. Era um período em que a China estava completamente fechada. Em 1978 vim para Hong Kong trabalhar na rádio como jornalista e editor e fiquei por cá.

Também trabalhou em Pequim quando ocorreram os protestos de Tiananmen. Como foi esse período na capital chinesa?
Foi uma altura muito estranha. Esse acontecimento, em particular, ocupou cerca de seis a sete semanas desde que os estudantes começaram a ocupar a praça. Se isto acontecesse num país europeu talvez não houvesse necessidade de intervenção militar. Mas aqui, no meio da China, num espaço emblemático, assistir ao que aconteceu foi uma experiência inacreditável. O início dos protestos coincidiu com a visita do presidente russo Mikhail Gorbatchov a Pequim e ninguém sabia qual seria o resultado das manifestações. Durante este período nenhum jornalista ia para a redacção. Íamos para a rua fazer entrevistas e as pessoas tinham muita vontade de falar, muito mais do que antes e depois do protesto. Estavam mais relaxadas. Foi um período extraordinário, tendo em conta que a China era um país muito controlado. Mas ninguém sabia o que iria acontecer. Na altura também estava muita coisa a acontecer no Europa de Leste e com a vinda de Gorbatchov havia muita gente a questionar o que poderia acontecer. No entanto, todos receavam a intervenção militar. Acabou por ser declarada lei marcial, penso que a 20 de Maio, o que significava o controlo militar. Inicialmente, o exército chegou à praça sem armas. As pessoas sabiam que o Governo queria que deixassem a praça apenas com a ameaça do exército. Mas mesmo assim os protestantes não dispersaram, apesar de saberem que era altura de desistir. Com a ameaça do exército no ar já se sabia o que se iria passar a seguir. Por outro lado, o protesto era também muito caótico. Não havia uma liderança real e ninguém assumia o controlo de nada. Os estudantes continuavam a chegar de fora de Pequim. O Governo acabou por enviar o exército com armas que inicialmente não foram usadas. Os protestantes resistiram e a violência acabou por acontecer. A partir daí as pessoas voltaram a não falar com a imprensa. Pouco depois fui para o Japão.

Tem escrito muito sobre a história da China. Como surgiu a ideia de escrever “Pioneers Of Macao – The Story Of 14 Chinese Who Helped To Make The City”?
Trabalhei para uma revista do território e fiz muitos perfis de pessoas para essa publicação. O Instituto Internacional de Macau queria publicar um livro com perfis de personalidades de referência e foi assim que apareceu esse livro.

Como fez a selecção de personalidades chinesas que contribuíram para a construção de Macau?
Há muitas pessoas e foi muito difícil escolher. Por isso, decidimos seleccionar gente de diferentes sectores, que tivessem contribuído para Macau, Hong Kong e para a China. Alguns são do sector do jogo, dois são fotógrafos, um é professor, outro bispo, outro foi o compositor do hino chinês durante a guerra com o Japão. Depois temos uma senhora, a primeira pastora da Igreja Anglicana que ficou famosa por isso mesmo, mas que acabou por renunciar depois da 2º Guerra Mundial devido à recusa dos seus colegas em reconhece-la. Dentro da história das mulheres no mundo e na igreja é uma figura importante.

Qual destas personalidades mais admira?
Uma delas é o bispo católico D. Domingos Lam, figura muito importante porque foi o primeiro chinês a tornar-se bispo. Até aí, apenas os portugueses tinham esta função. Penso que para a maioria das pessoas, principalmente para os chineses, foi muito estranho que o Vaticano tivesse esperado tanto tempo para escolher um bispo chinês. Foi também o bispo que assistiu à transferência de administração e teve um trabalho difícil de combinar as duas culturas do território, a portuguesa e a chinesa. Penso que o fez de uma forma muito segura. Ele estudou em Portugal, falava bem português e era muito próximo da comunidade portuguesa. Acho que foi uma personagem notável. Mas a minha favorita é mesmo a pastora anglicana, Florence Li que teve uma vida muito difícil. Esteve em Macau durante a guerra sino-japonesa e teve um papel importante no acolhimento de refugiados. Depois, os seus colegas em Londres retiraram-lhe o título sem razão nenhuma. Mas devido ao preconceito dos homens da Igreja que estavam em Londres, e que não tinham qualquer entendimento do que ela fez em Macau, teve de se afastar. Ela concordou sem protestar. Acabou por regressar ao continente e em 1949 podia ter voltado a Hong Kong, mas optou por lá ficar. Sofreu muito durante a revolução cultural, como muitos outros, e só foi autorizada a sair após a revolução. Acabou por ir para Hong Kong e depois mudou-se para o Canadá. É uma figura muito inspiradora.

Que livro mais gostou de escrever?
O que escrevi sobre o meu avô, Frederick O’Neil. Naturalmente, porque é da minha família, mas não só. Antes de escrever o livro não sabíamos muito acerca da vida dele. O meu pai só ficou na China seis anos e depois cresceu na Irlanda. Na altura, não havia internet ou telefone e sabíamos muito pouco do que se passava na China onde viviam os meus avós. Na pesquisa para o livro acabei por saber muito acerca da sua vida.

Como conseguiu chegar à informação?
Ele escreveu muitos relatórios para a igreja de que fazia parte na Irlanda, que tem uma biblioteca maravilhosa. Durante a 2ª Guerra esta biblioteca não foi bombardeada. Os alemães bombardearam Belfast pelo menos três vezes, mas em nenhuma delas a biblioteca foi atingida. Fiz uma copia de tudo o que o meu avô escreveu e o que o implicava e foi a partir daí que escrevi o livro. Tive acesso à informação escrita durante o tempo todo que esteve na China. Os missionários que na altura estavam na Manchúria também escreviam muito e por isso também acedi a outras abordagens dos eventos.

Destaca algum acontecimento, de entre as histórias que pesquisou, que o tenha marcado em particular?
Há um relato feito durante o período da 2ª Grande Guerra feito pelos missionários que foram presos pelos japoneses. Estavam em Nagasaki no dia em que foi lançada a bomba atómica. Temos cartas dos missionários a descrever aquele dia. A bomba explodiu e todo o ar nuclear foi levado pelo vento que soprava apenas numa direcção, oposta ao lugar onde estes missionários se encontravam. Quem estivesse na direcção do vento morria só por respirar o ar. É um relato muito intenso que aborda também a cultura japonesa. Apesar dos maus tratos que sofreram, estes prisioneiros não falam dos japoneses com ódio e enfatizam o seu lado bom que veio ao de cima após o final da guerra. Mencionam que depois da rendição, os japoneses não eram os mesmos, já não eram os carcereiros hostis que infligiam maus tratos. Não eram descritos como pessoas más, mas como vítimas do sistema mau que tinha forçado o seu comportamento. Assim que o sistema mudou eles começaram a comportar-se melhor. Histórias como estas tornam os relatórios do meu avô e de outros missionários muito interessantes. Eles viveram no meio das pessoas, quer na China ou no Japão. Não eram expatriados. Conheciam muito bem o povo, os seus costumes e pensamento.

Houve mais algum episódio que o tenha marcado?
Outra história interessante aconteceu durante a Rebelião dos Boxers, que terminou em 1900. Um dos objectivos deste movimento era matar todos os missionários que estivessem na China, considerados demónios estrangeiros. O meu avô estava a andar na rua e viu um anúncio que dizia que ele ia ser executado. Ele era um jovem com cerca de trinta anos. Mostrou o anúncio a amigos chineses que lhe disseram que era melhor ir-se embora. Ele e o cozinheiro acabaram por fugir para Harbin e daí para território russo. Foi uma viagem muito longa feita de carroça puxada a cavalos. Pelo caminho cruzavam-se com alguns rebeldes e podiam ter sido mortos a qualquer momento. Os missionários não podem ter armas com eles, não tinham como se defender. Ficou na Rússia cerca de um ano. Os boxers foram finalmente derrotados e eles acabaram por regressar à China. Penso que o retorno também é muito corajoso. Não sei se actualmente as pessoas fariam o mesmo: regressar a um sítio onde não tinham sido bem-vindas. Ele sentia que a sua missão era na China e que tinha de lá estar. O meu avô também construiu um hospital de medicina ocidental e duas escolas, uma para raparigas e outra para rapazes, na vila onde vivia. A de raparigas era a primeira daquela região. Para manter as escolas ele não pedia propinas fixas aos alunos, cada um pagava conforme fosse o rendimento da sua família. Graças a isto muitas crianças acederam ao ensino. Em Dezembro do ano passado liguei a um senhor, de 93 anos, que estava em Dalian e foi um dos alunos na escola do meu avô. Ele disse-me que tinha frequentado a escola com dois irmãos. Acabaram por se formar em medicina. Se não fosse o meu avô, nenhum deles poderia ter tido a educação que teve.

Como vê o papel actual da China no mundo?
É inacreditável. Quando fui trabalhar para o continente, nos anos 80, era um mundo à parte. Vou-lhe contar uma história. Fui de visita em 1980 e combinei encontrar-me com uma amiga num restaurante. Quando entrámos havia dentro do restaurante cerca de 50 pessoas. Todos usavam casacos de algodão azul, todos tinham o cabelo curto e eu não conseguia sequer distinguir os homens das mulheres. Sentámo-nos a comer uma massa e estas pessoas vieram, todas, para a nossa mesa e ficaram ali paradas a olhar para nós. Não o faziam de forma hostil, mas sim porque estavam curiosas. Em 1980, éramos umas criaturas diferentes que podiam ter vindo do espaço. Actualmente, a China é a segunda maior economia mundial. Os chineses agora viajam pelo mundo inteiro, são turistas, pessoas de negócios, estudantes. São ricos e podem comprar produtos de topo e empresas inteiras. Num curto período de tempo, a China transformou-se de um país noutro completamente diferente, o que é extraordinário. Acho que isto nunca aconteceu antes na história no mundo. A Alemanha, o Reino Unido ou a América também mudaram muito devido à industrialização, mas isso levou-lhes muito mais tempo. No caso da China, a transformação é feita muito rapidamente. Penso que nos podemos considerar pessoas com sorte por podermos ver esta mudança enorme. É um momento histórico para aqui estarmos, em Macau ou Hong Kong, a assistir a isso em primeira mão. É incrível.

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