EntrevistaGarcia Leandro sobre o reatamento das relações diplomáticas: Um feito “despercebido” em Macau Diana do Mar - 11 Fev 2019 Foi durante o mandato de Garcia Leandro que Portugal e a China reataram relações diplomáticas. Em entrevista ao HM, o ex-governador (1974-79) recorda o antes e o depois de um feito que passou “despercebido” para a população do território. Fala ainda da “acta secreta” centrada em Macau, da qual diz não ter tido conhecimento à data, definindo-a como “desnecessária” para a evolução das relações luso-chinesas Como se processavam as relações no triângulo Lisboa-Macau-Pequim antes do reatamento? Dado que antes de 1974 não havia relações diplomáticas, as relações com a China eram feitas através de intermediários, como o representante da comunidade chinesa em Macau, Ho Yin. Esses contactos foram crescendo de forma positiva, até abrir-se a porta a representantes oficiosos da China em Macau, como O Cheng Peng, que era simultaneamente o presidente da Agência Comercial Nam Kwong e do Banco Comercial Nam Tung [o Banco da China]. Macau era o espelho do Portugal que tinha aparecido com o 25 de Abril e começou a haver uma política de aproximação, com sucessivos convites da China a figuras e entidades de Macau e a grupos artísticos e desportivos de Portugal, como a muito importante e política visita do Sporting. Um dos primeiros convites, alvo de vasta cobertura mediática até pelos órgãos de Hong Kong, foi o endereçado aos meus pais e à minha sogra em Abril de 1977, convidados por Ho Yin para irem à Feira de Cantão. Esse foi o primeiro sinal, depois foi sempre em crescendo. Fui convidado para ir à China duas vezes, incluindo em Abril/Maio de 1978. Na altura, tive contactos com o Governo de Cantão em que foi analisada a forma de tratar questões relacionadas com Macau. Disseram que tudo podia ser posto e visto por O Cheng Peng e que, caso ele não pudesse resolver seria encaminhado para a Cantão e, em última instância, até Pequim. Portanto, foi uma fase em que houve uma aproximação progressiva entre o Governo de Macau e os chineses – tanto com a comunidade chinesa de Macau, como com representantes da China em Macau e, por conseguinte, com a própria China. A confiança foi aumentando e o processo para o restabelecimento das relações diplomáticas iniciado em Paris – após uma primeira ideia, que desaconselhei, para ser em Macau – foi-se desenvolvendo, apesar de contratempos na fase final, até ser finalmente concluído a 8 de Fevereiro de 1979. O que mudou em Macau? A partir daí, no final do meu mandato, o governador de Macau passa a ter o apoio de um embaixador de Portugal em Pequim e de um embaixador da China em Lisboa. A vida dos governadores de Macau alterou-se com essa âncora. Tal acontece com os três governadores que se seguiram até à Declaração Conjunta, em 1987, que dita uma co-responsabilização de Portugal e da China perante o futuro, o que significa que o governador de Macau passa a ter uma relação directa com Pequim e todos eles foram visitar a capital chinesa [Carlos Melancia e Rocha Vieira]. Estamos a falar de três fases completamente diferentes… Sim, uma sem relações diplomáticas, em que o contacto tem lugar via intermediários, em que tudo teve de ser reconstruído, com uma aproximação sucessiva através da chamada diplomacia ‘pingue-pongue’ [de convites para lá e para cá] que permite reforçar a confiança. Depois, com os respectivos embaixadores de Portugal e da China até à terceira fase em que há co-responsabilização perante o final e se desenrola um trabalho muito intenso para preparar o futuro e se cria o Grupo de Ligação Conjunto. Do ponto de vista da população em Macau e mesmo da governação não houve, portanto, uma alteração de fundo a partir do momento em que as relações diplomáticas foram reatadas… Foi um feito que passou despercebido às pessoas de Macau. A grande alteração sentida em Macau foi antes, com a grande autonomia dada ao Governo de Macau por via do Estatuto Orgânico [1976] que, de facto, alterou completamente a vida de Macau. O restabelecimento das relações diplomáticas propriamente dito não se sente. No livro “Macau Nos Anos Da Revolução Portuguesa 1974-1979” aborda o antes e depois do reatamento, mas não faz qualquer referência à acta secreta sobre Macau, assinada em Paris, a par com o reatamento das relações. Tinha conhecimento da acta secreta, cujo conteúdo apenas foi revelado parcialmente em 1987? Eu só tive conhecimento à posteriori, não sabia. Sinceramente, não me parece que essa acta secreta fosse necessária para a evolução das relações diplomáticas, mas foi o que decidiu o Governo português com o chinês. Tinha muito a ver com o problema da influência da [antiga] União Soviética em Portugal e, eventualmente, em Macau. A China tinha muito medo que Portugal caísse na órbita da União Soviética e que adviessem consequências. Era uma questão que não se colocava, era mais uma preocupação de carácter teórico por parte de um regime que não estava solidificado, dado que a China ainda estava a passar por um período de reforço das posições de Deng Xiaoping, com todas as reformas que fez. Só soube apenas em 1987? Não lhe causou estranheza o facto de não lhe ter sido dado conhecimento, atendendo a que a acta secreta era sobre Macau? Sim, aliás, depois não perguntei nada a ninguém a esse respeito. É realmente um pouco estranho e surpreendente, mas foi o que sucedeu. Mas, como referi, a acta secreta não alterou a realidade e com ou sem ela a evolução das relações diplomáticas e a vida em Macau seria a mesma. Já no meu tempo tinha tomado posições face a alguma influência de pessoas de Macau que estariam ligadas em Portugal a partidos com relações à União Soviética que eu não aceitava e não queria precisamente porque o que nos interessava era ter boas relações com a China. Independentemente do tipo de regime na China tínhamos de ter boas relações e esse meu trabalho foi reconhecido. Essa acta também refere a questão de Taiwan e, como se sabe, depois de 1949 muitos representantes do Kuomintang estabeleceram-se em Macau. Isso é diferente comparativamente ao pânico da União Soviética… A questão de Taiwan ainda não acabou. Na altura, o que se passou foi que, no final da guerra civil, o Kuomintang foi para Taiwan. Mas qualquer um deles – o Partido Comunista ou Kuomintang – sempre defendeu uma China única e há um determinado momento em que Chiang Kai-shek tenta influenciar os americanos no sentido de o apoiarem numa invasão dentro da lógica de uma China única. Por isso, houve uma época mais intensa mas no pós-1949. Eu não já não senti isso, [pelo que], quando me fala numa certa dificuldade de compreensão de documentos como a acta secreta, é preciso ver que quem tem responsabilidades de longo prazo, em particular com política internacional à mistura, quer prever. É uma previsão para que não aconteça, visava comprometer a outra parte que isso não aconteceria. De Taiwan nunca houve nada em concreto e embora tenha visitado o Oriente todo, principalmente os países por onde os portugueses passaram, nunca fui a Taiwan por cuidado diplomático. Mas o general Garcia Leandro é que era o governador. Se a acta secreta era sobre Macau como poderia Lisboa, garantir o cumprimento? É um pouco estranho, até porque seria talvez a pessoa mais bem posicionada para se pronunciar a respeito… Pois era… há coisas que se passam em Portugal e na política muito estranhas que continuam a acontecer hoje. Durante os meus mais de quatro anos em Macau tive oito governos em Lisboa e cinco primeiros-ministros. Foi um pouco difícil, como deve imaginar [risos]. Portanto, havia muita instabilidade e alguma falta de conhecimento total e preciso do que se estava a passar do outro lado do mundo. Chegaram a propor-lhe que permanecesse como governador de Macau por pelo menos mais dois anos e depois, na sua última visita a Pequim em Janeiro de 1979, até que se tornasse no primeiro embaixador de Portugal na China, mas respondeu que tal não era possível… Sim. Chui Tak Kei e Roque Choi pediram-me para continuar como governador e vieram a Lisboa propor isso ao nosso Presidente. Era uma época muito difícil, mas havia essa preocupação de evitar grandes mudanças. De facto, mais tarde, muita gente me perguntou e eu próprio me questionei o que significavam mais dois anos, mas as coisas são como são. Sim, depois, em Pequim, tanto na visita ao Ministério dos Negócios Estrangeiros como à Universidade, recebi grandes agradecimentos pelo trabalho enquanto governador e disseram-me que esperavam que fosse o primeiro embaixador de Portugal na China, o que foi muito simpático, mas não podia ser. Quando diz que não podia ser era por causa da carreira? Essencialmente por três razões. A primeira tinha que ver com a carreira. Até podia estar a fazer um bom trabalho, mas não era serviço militar, estava a exercer funções políticas. A outra era que estava realmente muito cansado, tive um esgotamento por excesso de trabalho, muitas preocupações e responsabilidades. E, por fim, a terceira era de carácter familiar, porque na altura, tinha duas filhas [hoje são três] que quase não via porque tinha uma vida muito cheia.