Data redonda com arestas

Horta Seca, Lisboa, 2 Janeiro

[dropcap]C[/dropcap]ontagem, agora mesmo que nos fixamos no calendário, na tentativa de melhor o ver. Cem crónicas sem que a dúvida se dissipe: em negro pano de fundo, aquilo que aqui se vem desenhando chega a ser espelho?

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

Mau e frio, este tempo. O [José] Bandeira, há tantas décadas a fazer-nos pensar de sorriso nos lábios, foi posto fora das páginas do Diário de Notícias em silêncio. Merecia suplemento especial, que assinalasse devidamente o seu contributo, mas nem falo nisso; eu, leitor, pedia apenas um obrigado. O [Paulo] Barriga, que fez do Diário do Alentejo um jornal atento e criativo, singular, acaba de ser saneado de modo vil. Ele há frios mais gélidos que outros, que nos encolhem, nos tolhem.

Horta Seca, Lisboa, 10 Janeiro

Só mesmo Tintim saberia resolver este enigma: Quem é Tintim? O seu nome está algures entre a alcunha e um erro infantil de dicção. Não tem apelido, veio ao mundo despido de família. E de infância: nasce a 10 de Janeiro de 1929, logo como repórter aos quadradinhos do Petit Vingtième, suplemento infantil de um jornal conservador belga que levava o nome do século. Tinha 14 anos. Cinquenta anos mais tarde não passava dos 17. «C’est bizarre, mais c’est comme ça !…», confirmaria, Georges Prosper Remi Remi, o jovem belga que, aos 22 anos e sob o pseudónimo de Hergé, assinava aquele traço tosco que compunha um rosto com três pontos, enquadrados por um pequeno nariz e duas orelhas interrompendo um círculo. A popa era ainda mais cabelo que personalidade. Naquela aventura no País dos Sovietes, a primeira de 23, foi jornalista, mas nunca mais se lhe viu estilo ou texto ou reportagem.

Quem é esse, então, risco tosco que, em 1930, Bruxelas em êxtase esperava como se fora herói de carne e osso? Quem foi o único rival confesso do general De Gaulle e inspirador de Warhol e de tanta arte moderna? Quem é esse nome sem sentido que continua a ser pronunciado em mais de 45 línguas e a brilhar na capa de mais de 170 milhões de álbuns de banda desenhada? Quem é esse pseudo-jornalista que desperta vocações e é das figuras da cultura popular mais estudadas?

Tintim é perfeito. Destemido e incansável, o seu coração é tão grande como puro. Foi, à razão folhetinesca de duas páginas por semana, colonialista quando a Europa o era, mas nutria simpatia pelos índios pele-vermelha. Procurava a verdade a qualquer custo, o que, está visto, acaba sendo inocência simpática. O seu paternalismo equilibrava-se com forte disponibilidade para o outro. Não deixou nunca de defender os fracos e de combater as injustiças, mas sempre do lado do poder legítimo. No último dos álbuns, Tintim e os Pícaros, o ditador derrotado lamentava-se ao ditador vitorioso por não cumprir a tradição de fuzilar os vencidos, a pedido do nosso herói: «Um idealista, não é?… Infelizmente essa gente não respeita nada! Nem mesmo as mais antigas tradições!», responde-lhe o reposto Alcazar: «Sim, triste época esta…» Uma ironia, está bem de ver, que Tintim foi respeitoso da sua época, embora desconfiado de ideologias. Só um fortíssimo desejo de vergar o mal o fez cruzar a Terra, do Ártico à Indonésia, do Médio Oriente à Suiça, da América do Sul à África Negra, de Chicago ao país dos Sovietes, da China ao Tibete, de países inventados como a Bordúria a uma Lua tão premonitória que até tinha água. E nesse afã aventuroso de salvar amigos usou todos e cada um dos meios de transporte, do avião ao foguetão, embora tenham sido os barcos e o mar palcos especiais. Tornou-se nómada, mas por muito que viajasse, regressaria sempre a um apartamento incaracterístico que, apesar de tudo, não ficava longe do palácio de Moulinsart, onde um tesouro repousava escondido em globo terrestre. O dinheiro não entrou na vida de Tintim, cujos inimigos principais acabaram sendo os capitalistas, maquiavélicos manipuladores de políticos e causadores de guerras, patéticos génios do mal que enriqueciam com o tráfico de armas, drogas ou escravos.

Tintim foi perfeito, insisto. Além de corajoso, era atlético e inteligente. Não bebia, nunca fumava, jamais vociferou. Para isso se multiplicaram personagens como o Capitão Haddock, esse iconoclasta senhor de gritante vocabulário, ou os gémeos Dupondt, desastrados e vigilantes, direi mesmo mais, vigilantes desastrados. (Na página, o comentário de Pedro Pousada). Sem sombra de pecado, nenhuma mulher conspurcou o seu mundo moralista, herdeiro dos códigos de honra medievais. Mas o cavaleiro solitário teve uma cadela, Milu, a fox-terrier que falava e tantas vezes o salvou quantas lhe fez perigar a vida? De pouco importava, para Tintim a amizade estava no tecto do mundo. Por ela, amizade, verteu a única lágrima, em Tintim no Tibete, quando julgou que o seu amigo Tchang, que não via desde O Lótus Azul, havia morrido.
«Em Tintim pus toda a minha vida», cedia um Hergé de 76 anos, a um par de meses da sua morte, esmagado pelo peso do fenómeno. A perfeição do herói de papel tinha como reverso o humaníssimo percurso do seu autor. Do mesmo modo que a actualidade marcou o ritmo de cada uma das aventuras de Tintim, também a vida de Georges Remi se imiscuiu na obra de Hergé. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim», escreve Pierre Assouline, autor de uma biografia, Hergé (ed. Folio, 1998). «A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos.»

O pensamento de Hergé tem a cor da sua infância: cinzento. Assumindo como divisa «toda a convicção é uma prisão», tratava-se de uma moral que misturava em doses iguais o espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor, valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas preconceituoso, cheio de generosidade ingénua e misógina virilidade. Para Hergé, mestre da «linha clara», a lisura há-de ser sinónimo de limpeza. Ora todo o homem, e o século XX encarregou-se de o escrever em sangue, tem os seus lados obscuros.

George Remi enfrentou os seus demónios com a ajuda de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achava co-autor de Tintim, marca o período da formação. Tchang, o artista-estudante que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual e artístico é a do período (vermelho) da maturidade, que corresponde a’ O Lótus Azul. A descoberta, em Fanny, da mulher-amante, que o faz divorciar-se, marca um período depressivo (branco) de Tintim no Tibete.

E ergueu uma obra, apesar dos seus tabus, fossem eles a dúvida acerca da identidade do seu avô paterno; ou a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo na imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos, talvez seja este o mais discutido, quando se limitou a sobreviver com algum oportunismo, obedecendo, afinal, à… amizade.

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