h | Artes, Letras e IdeiasRepetição I António de Castro Caeiro - 4 Jan 2019 [dropcap]V[/dropcap]amos muitas vezes aos mesmos sítios. As nossas localidades têm uma referência espácio-temporal. Os locais das nossas biografias estão espalhados por diferentes latitudes e longitudes. A auto-referência espacial dá-lhes um sentido auto-biográfico. Há sítios que não tinham importância para nós e passaram a tê-la. Há sítios que tinham uma importância absoluta para nós e que também a perderam. Os sítios nos mapas das nossas vidas ganham e perdem, voltam a ganhar e voltam a perder, importância, dizem-nos muito, tudo e: nada. Sítios, lugares, localidades e espaços são à partida definidos espacial e geograficamente. Os espaços podem ser delimitados como uma casa: a casa da praia, a casa dos pais, a casa dos avós, a casa de cada elemento da nossa família ou de cada amigo, a nossa própria casa, as diversas casas que habitamos ao longo das nossas vidas e as diversas casas- ou as mesmas- dos outros. Podemos também no interior de cada habitação falar dos “nossos” espaços, como o quarto na juventude com as suas mais bizarras e peculiares bandas sonoras, conversas com amigos, ainda projectos dos seres humanos que estavam para ser, com os assuntos mais ou menos banais, resultantes da descoberta do interesse pelos outros: namoradas e namorados, estudos futuros, e tudo o que inquieta mentes jovens como a festa do fim de semana seguinte e a indumentária a usar. Mas podia ser a sala onde, ainda todos estávamos vivos, passávamos vésperas e dias de Natal, a véspera de ano novo ao jantar e o almoço do primeiro dia do ano. Ou cozinhas onde convivíamos com a avó, mãe e tia, para bater bolos, ir buscar talheres e pratos, para pôr a mesa. Havia a escola, a da infância, os liceus que frequentámos, a Faculdade. Havia ginásios onde passávamos muito tempo, um espaço que ocupávamos física e virtualmente. Depois: cafés, o café do liceu. As localidades das nossas vidas são também públicas. A beira-mar, Alcântara, Carcavelos, Estoril, Guincho. A oriente: Cais do Sodré, Terreiro do Paço, Expo. Podem ser horizontes mais ou menos alargados como províncias: Alentejo e Trás-os-Montes, rios: Tejo, Mira, Douro. Podem ser países: Portugal, Alemanha, Japão, Tailândia Brasil. Podem ser sítios onde fomos e lá estivemos em diversas épocas da vida, com as mais variadas pessoas, muito tempo ou por breves instantes. Podem ser sítios onde fomos felizes e sítios onde fomos infelizes e sítios onde fomos felizes e infelizes. Podem também ser sítios onde nunca fomos e aonde pensamos ir, aonde podemos ir. Podem ser sítios também aonde nunca iremos, mas que nos definem. Sítios há que existem nas geografias mais objectivas do mundo, mas que não existem já no tempo. Paris de Hemingway, Hollywood de Sinatra. Sítios que, sem as gentes que lá viveram e por lá foram, já não são os mesmos e existem em dimensões paralelas. Esses sítios existem em mundos paralelos e possíveis que podem ser revistados pelos portais virtuais da imagem cinematográfica ou do som das músicas, das fragrâncias, aromas e dos paladares de coktails que nos depõem em dimensões concretas mas meramente virtuais. Cada ser humano é portador de uma data de sítios, tem guião para cada um deles. Podem ser muitos, a princípio, como as pessoas que começam a viver no estrangeiro muito cedo e estão entre cá, que é o País de origem e lá, que é o País onde vivem. O cá pode passar a ser o País onde vivem há tantos anos, há mais anos do que viveram no País de origem. Lá pode ser o País de origem, de onde partiram há tanto tempo que já não se lembram de como era. Não se lembram, não das paisagens, mas dos outros, dos que morreram, dos que desapareceram dos mapas afectivos, ficaram vida fora, passaram a ser personagens figurantes nos filmes das nossas vidas, mas apenas em episódios. Depois, ficam vida fora, mesmo que tivessem sido preponderantes na formação da nossa personalidade e até existência. Cada ser humano referencia os sítios, locais, localidades, espaços das suas existências de tal forma que a sua geografia é ainda mais complexa do que o mosaico que a constitui. É que o que constitui as nossas geografias é o sou que cada um de nós diz: sou eu lá em cada um desses sítios, locais, localidades, espaços. Ser eu lá é o que cada um de nós pressupõe, quando habita um sítio. Ser eu lá e sermos nós dois ou todos lá. É isso o que define: seres tu lá, serdes vós lá, serem eles lá nos sítios da tua vida, da vossa vida, da vida deles. Quantas vezes não revisito em memória o pátio do Rés do Chão do prédio da minha infância. Era enorme. Tinha clarabóias que davam para a garagem do prédio. Havia cereal a secar, miúdos a jogar à bola, uma luz crua no verão que ofuscava os olhos, a família indiana que o habitava com aromas de caril e sons estranhos. As traseiras das casas dos meus avós davam para o pátio do meu liceu. Agora, implodiram os ginásios e tudo irá dar lugar a um hotel. A praia do Monte Estoril que estava ligada à do Tamariz está dividida por paredões. Parecia maior na infância. Em cada um desses sítios sou eu lá a ser, são os sítios da minha vida onde lá estive. Ninguém os pode ver como eu vejo. Não que não os possam ver no que são. Não podem ver esses sítios à minha maneira. Como eu não posso ver os sítios dos outros à maneira dos outros. Nós vemos os nossos sítios como pessoas das nossas vidas e nós vemos as pessoas das nossas vidas de um modo peculiar. Influenciamos e somos influenciados. Os sítios não são apenas habitados. Habitam-nos também. Entram por nós adentro. Insinuam-se ou impõem-se, acolhem-nos ou estranham-nos. Somos nós sempre a fazer ser os sítios das nossas vidas. A auto referência biográfica constitui-os. Sem o si mesmo de cada um de nós os sítios são paisagens fotografadas em postais ou em fotografias dos álbuns de todas as famílias que não conhecemos. São sítios impermeáveis, sem história, sem nos dizerem nada para além do caracter objectivo que apresentam. São denotações e denominações ilustradas sem o figurado ou a possibilidade de conotação. Quando vejo o meu liceu, ressuscito mortos, jovens envelhecidos, adultos que foram ou não foram o que queriam ter sido e foram ou não foram como queriam ter sido, pior: nem sequer foram o que poderiam ter sido. Eu vejo-me lá, quando jovem, nem sequer era o princípio, era tão incipiente que não era a minha existência, como eu, apesar de tudo, reconheço que é a minha existência. Quando eu me lembro do pátio do prédio da minha infância eu ponho-me lá todo eu, um horizonte, uma paisagem escancarada. É a minha vida que constitui o horizonte onde eu ponho pela memória esse pátio, desse prédio, à minha frente, como também eu lá fico deposto. E sem ver os outros, quando vejo a luz crua do sol reflectida no pátio, eu ponho lá a avó na cozinha, o pai no Banco onde trabalhava, a mãe a chegar a casa, a rua da frente, o rio Tejo ao fundo, Lisboa que eu não conhecia ainda na minha ténue infância e era projectada no futuro a haver de mim ainda e Lisboa. Em embrião, nessa apresentação da infância estava já o seria e haveria de ser com todas as outras paisagens que preenchem o meu mundo, com todos os outros que perfazem os protagonistas da minha vida. Um sítio das nossas biografias nunca está isolado do mundo nem é despovoado de gente, mesmo que seja uma natureza morta.