Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasSe não me puderes amar no inverno, quando? António Cabrita - 3 Jan 2019 [dropcap]P[/dropcap]alavras que sejam, elas próprias, desempenho, e, mais do que adejo, corte sob a pele. Não há outra medida para o escritor, mentira que lhe valha. Por isso, continuemos, venha o que vier: os pálidos gestos de ternura, as tempestades, os descalabros invisíveis da História ou o paliativo do quotidiano. Mesmo os que não nos consolam os tremores íntimos anónimos, aqueles que feriram, apesar de aparentemente irrelevantes; eu em miúdo odiei ter sabido que um bigode pode ser à Cantiflas – e, sim, o humor não resgata tudo. Contudo, só porfiando algo se articula, um raio ou uma face arregalada pelo desarme. Só transformando a escrita em vivência ela arranca à viscosidade do caos uma repetição equiparável à buzina com que Harpo Marx inscrevia no silêncio uma nova linguagem. Um novo ano, e nada me ocorre senão aquele começo poderosíssimo de Camilo José Cela em Ofício de Trevas 5: «es cómodo ser derrotado a los veinticinco años aún sin una sola cana en la cabeza sin una sola caries en la dentadura sin una sola nube en la conciencia con sólo dos o tres lagunas en la memoria y mirar el mundo desde el cielo desde el purgatorio desde el infierno desde más acá de los montes pirineos y la cordillera de los andes con frialdad con indiferencia con estupor». Conheci tantos em quem vi a comodidade de serem derrotados aos vinte e cinco. Antes de, devido à intransigência que cabe aos jovens, conseguirem sequer adivinhar que afinal nada há de intransitivo na vida. Ou melhor, que a única coisa intransitiva na vida é a idade – a única aprendizagem que se entranha. O mais é puro derrame de uma coisa noutra, contágio, intersecção, simbiose e corrupção. Só a idade nos retém e aparvalha – uma besta enfurecida – entre maxilares. E mesmo aí temos direito a momentâneos vislumbres fora da caixa palatal que nos rumina. Enquanto, merda, ficamos tardios, a congeminar que a roleta do mútuo consentimento nos abandonou e que ao selvático empenho de amar se sobrepôs o respeito, a defeção. O que quer que isso seja. Sem outro ganho que o de reconhecermos: sob a dura casca de noz que nos subjuga lateja ainda um jovem assombrado pelo tumulto das luzes que nos cegou no seio do labirinto. A chegar aos sessenta (faltam dezoito dias) pergunto-me quantos livros li até ao fim? Necessariamente um terço dos que comecei a ler. E acima das trezentas páginas contam-se pelo dedo. O Moby Dick, Dostoievski, Tolstoi, alguns Dickens, Saul Bellow, dois ou três volumes do Proust… ou livros que tive de ler por trabalho. Fico sempre banzado, no estrangeiro, quando vejo multidões nos comboios e no metro aferrarem-se a setecentas páginas de irrelevâncias. Li mais até ao fim Saramago do que Lobo Antunes. É-mais fácil. Há em Saramago um admirável trabalho de relojoaria, a que se segue o ronrom. Com Lobo Antunes levanta-se uma questão de densidade – prescinde da trama, abro qualquer livro e leio cinquenta páginas como se mergulhasse no mercúrio. É retemperador, mas preciso de pausas entre cada dose. Escusam de me perguntar de quem gosto mais, sou incapaz neste caso. Já entre Eça e Camilo alinho por este último. Demasiadas vezes interessa-me mais o processo do que a história do livro. Há escritores a quem cheguei cedo e outros a que acostei tarde. Ao Ruben A. cheguei temprano e ainda hoje me admira ser tão desconhecido da maioria, ao Augusto Abelaira cheguei tarde, à primeira só o Bolor me agarrou, mas trinta anos depois de não o ler comprei no metro O Triunfo da Morte e Sem Tecto, Entre Ruínas, e percebi que aquela liberdade livre é rara e só por extrema deficiência na educação dos leitores ele não é, foi, um sucesso. É difícil a unanimidade, mas livros há que me espantam de não a terem. O Alface impingiu-me um autor francês que, orgulhoso, só fui ler depois da precipitada morte dele, o Maurice Pons e o seu As Estações. Até chorei depois da leitura do livro por não o ter lido antes, para comentarmos o livro. É extraordinário, um dos maiores exercícios da imaginação que li na vida. Contudo, já o tentei vender a meia dúzia de pessoas que não compreendem o meu entusiasmo. Há contágios que só passam de escritor para escritor, sendo necessário lidar com os limites da imaginação própria para reconhecer um acto pleno. Em França há clubes de fãs de As Estações, em Portugal foi um fracasso absoluto. Há livros nas minhas estantes cujas edições se desfazem de tantas vezes serem relidos, dobrados e riscados, como Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, o Empresta-nos o seu marido?, de Graham Greenne ou o Mulheres e Homens, do Richard Ford; outros, apesar de lhes reconhecer a excelência, deixam-me frio e abandono-os invariavelmente a meio, como os livros do Sebald, que têm todos um ar espantosamente novo. Agora, com um pé nos sessenta, sinto-me ejectado para o espaço. É o momento de fixar um livro de memórias. E tudo só pôde começar porque arranjei um título convincente, e desta vez não lhe mudarei uma sílaba: Se não me puderes amar no inverno, quando? Será em três volumes, o primeiro sobre a infância, o segundo em torno dos amores e o terceiro sobre a escrita. O primeiro é o que me ocupará neste mês de Janeiro. O segundo escrevê-lo-ei em Janeiro de 2020 e assim sucessivamente. Será o modo de atar o meu corpo ao compromisso de durar mais uns anos, viés sobre o qual às vezes tenho dúvidas. Que as letras me catapultem e se rendam à hipótese de que existe uma realidade para além das imagens, suscita-me o desejo de toda a luz e é o projecto possível para quem não nasceu para ser discípulo do Mallarmé.