Dor

[dropcap]C[/dropcap]omo agulhas espetadas debaixo das unhas. Acutilante prioridade dos sentidos que tudo reduz a pó, que rouba significado onde quer que possa encontrar miolo, até que o tempo pare de contar. Angústia constitutiva que diz quem somos, de onde viemos e para onde vamos, tudo se reduz a mim. Todas as preces e eucaristias, somas múltiplas de adorações, pedaços de vida devotos à transcendência são trazidos de volta à terra através de mim, a força maior. A lancinante puta, mãe de todos os nervos, vertigem dos corações desvairados, ombro falso dos solitários, oásis equivocado dos melancólicos. Todos retornam ao meu espinhoso aconchego, à concórdia deste nó que não desata e que só por fogo pode ser dissolvido. Poder que tolda a visão, que escurece os dias e que humildemente lembra às almas a insignificância da sua natureza, que mancha de fedor o perfume dos problemas quotidianos. Dona dos oprimidos e dos culpados, razão de ser dos pecadores, medida improvável dos descrentes e de todos os espíritos livres e autónomos de dogmas, de amores teóricos e falácias do marketing. Ferro em brasa onde mais magoa, rasgo libertador de sangue, rio de lágrimas gordas, sinfonia de gritos de desespero que dá música à natural dança do que é ser humano. Todos esmagados neste almofariz existencial, triturados até os ossos que se transformam em farinha fina sob a graça da minha pressão, regresso aos elementos químicos básicos, até todos serem energia cósmica que dói, que aflige as estrelas e molesta sem perdão as constelações. Náusea imensa que cresce bem para além das possibilidades, que se agiganta além das características dos sólidos e da fantasmagoria dos vapores. Asco que leva o estômago numa viagem de montanha russa sem altos, só baixos, sempre em queda livre sem ver o fim, sem descanso derradeiro que traga paz. Aflição máxima que busca e sonha com o breu, o silêncio, a dormência, o branco invasor onde se pode dormir em paz, livre o cansaço do sonho. Desejos de recompensas divinas da grande deusa palavra, amor incondicional a uma esquiva ideia de eloquência e ao espírito sempre elusivo, que escapa entre os dedos dos tolos. Captura-se a espaços, aqui e ali, em golpes de sorte e logo de seguida desvanece-se e retorna ao âmago do mal, ao lar das agonias, à certeza da mais completa banalidade devota justamente ao esquecimento. Um corte mais fundo que o outro, precipício íntimo em que se cai quando se pensa que se está a erguer de algo, elevação que se revela queda a pique. Abismo onde a sagacidade adormece quando os olhos se cerram e os dentes rangem. Sentir tudo, sentir e nada poder fazer quanto a isso. Incapacidade como essência perante a indiferença fatal da biologia. Não sou a dor que purifica, a dor que busca prazer, a dor sacramental de masoquista elevação espiritual, não sou a dor que adorna estados de mente, bibelôs emotivos ou desesperos recreativos. Sou o rasgo que devora nervos e que vive sempre com o homem e a mulher. Sou calvário, suplício e a mais completa das mortificações. Sou a implacável sílaba máxima que se berra surda em múltiplos “ais”, que dispensa verbo, predicado e que dilacera o sujeito. Para muitos, sou a via para o paraíso e o eterno sofrimento do inferno, essa evangélica contradição que é o cimento dos mitos. O meu nome é Adamastor, a soma de todas as tormentas, farpas enterradas em carne sensível, cilício cravado na fé, flagelação, a pena máxima aplicada a toda a criação.

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