h | Artes, Letras e IdeiasNão voltarás a Casablanca José Navarro de Andrade - 5 Out 201811 Nov 2018 [dropcap style≠‘circle’]Q[/dropcap]ue se saiba nenhum dos participantes na conferência de Casablanca de 1943, reunindo Roosevelt, Churchill, De Gaulle e respectivos áulicos, fez menção ao Rick’s Café, onde seria suposto desenfadarem de noite dos imbróglios e subtilezas diplomáticas que os Aliados entre si enredavam de dia. Tê-lo-iam as autoridades encerrado depois de averiguado o assassinato do major Strasser? Terão Rick e Renault cumprido a intenção de incorporarem as forças da França livre em Brazzaville tal como os ouvimos combinar? Acerca disto resignemo-nos a uma perpétua ignorância. Certo e seguro é, contudo, que Rick e Ilsa nunca mais voltariam encontrar-se depois daquelas noites, em Dezembro de 41, de mortificante espera em Casablanca. Tal certeza tem inabalável base numa evidência. Se por acaso ou deliberação eles houvessem estado posteriormente juntos, fosse para caírem nos braços um do outro, ou para constatarem quão irremediável era a sua divergência, ou mesmo enquanto dois estranhos sem desejo de exumarem o passado; em qualquer das situações alguém teria filmado uma reunião tão querida e suspirada pelos milhões de corações românticos fendidos com o rasgo de virtude que separou Rick de Ilsa. E se não houve filme é indubitável não tenha havido reincidência. Após um intervalo de 20 anos voltei a ser convidado para casamentos, agora a título de parente dos pais dos noivos. Não arrisco encalhar na periférica “Mesa 19” do filme (que é parvo, mas fere) porque me destinam assento no respeitável quadrante dos tios, daqueles que têm idade para desfrutarem do copo-d’água sem se engasgarem nas dúvidas existenciais próprias de quem sente o futuro a pedir-lhes contas. Em contrapartida é usual os comensais destas mesas tomarem a oportunidade como óptima para mansamente se embriagarem, sem culpa nem ostentação. Assim aproveitam bem o espírito da boda dando largas à melancolia e, nos casos mais melindrosos, ao remorso, interpelando o seu próprio e longínquo matrimónio. Onde estariam àquela hora se em vez do vínculo que os conduziu ali se tivessem decidido por alguma das alternativas em seu tempo preteridas? Nada disto é proferido, claro, porque a ocasião é de alegria e alegria se deve exibir; é só um pathos latente e sigiloso, para não envenenar a festa. Afastei-me um pouco dos animados grupos que beberricavam sangria de frutos vermelhos (nome da moda de um xarope que rebuça vinho mau ou estraga vinho bom) à procura de um canto onde fumar. Ao lado do cinzeiro estacionava uma senhora encanecida e franzina, que evolava a classe indiscutível das avós insubmissas, das de gin em chávenas de chá, voz grave de timbre arranhado, clube de bridge, pele de muitos verões e cigarros finos de mentol. Duas ou três larachas de circunstância não eram trocadas quando desferiu à queima-roupa: – Tu és o Zé Navarro? – O artigo definido suscita sempre um certo alarme, que fiz por apaziguar com a ironia de uma frase feita de filme americano: – Quem pergunta por ele? – Sou a Quica… O passado equipara-se à má ficção, redigida por um escritor parcial e volúvel, incapaz de criar um nexo de causa e efeito naquilo que narra. Da Quica não me lembrava de nada a não ser da vivíssima memória que dela retivera: cenas fragmentadas, instantâneos soltos, expressões espontâneas, o contorno de uma silhueta esfumada, um par de cenários fixados pelo que neles aconteceu, roupa de inverno enrodilhada numa cadeira, um hálito. E estas nebulosas reminiscências de modo nenhum se vinculavam à pessoa diante de mim. – Reconheci-te pela voz. Na expressão dela, que há-de ter reflectido o meu pasmo, transpareceu a mais nua e desprevenida sinceridade. Através do estrago que o tempo trabalhara nas feições do outro, ambos tínhamos acabado de aferir a justa medida do nosso descalabro físico desde aqueles impetuosos e desprevenidos dias de prazimento na década de 80. Trocamos impressões durante um cigarro. Eram díspares e desfasadas as nossas entrecortadas recordações. O embaraço mútuo impediu de partilhar com aquela desconhecida a memória de peripécias e desenvolturas que decerto também ela guardava. À saída do banquete procurei-a para me despedir, mas não a vi mais. Ao contrário de Rick e Ilsa, a Quica e eu não fomos poupados ao desencanto com que a passagem do tempo conspurca o passado.