Videojogos | Do uso lúdico à dependência

A Organização Mundial de Saúde adicionou, no final do ano passado, a dependência de videojogos no manual de diagnóstico de doenças mentais CID-11. Entre os jogadores, há quem modere com sucesso o tempo de jogo, mas há também quem perca o controlo. A psicóloga Nadia Chan entende que é necessário agir preventivamente e perceber que transtornos estão por detrás da dependência

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntónio (nome fictício) tem 20 anos. Terminou em Julho o 12º ano e passou parte da adolescência trancado no quarto a jogar videojogos. Começou, com tenra idade, na companhia do pai. Nessa altura, conseguia separar a vida jogada da vivida e saía com a família, ia ao cinema e ao teatro, brincava com amigos na rua e jogava frequentemente à bola com o pai. Tudo normal.

A adolescência chegou e com ela o intercalar entre consolas e outras actividades foi-se tornando mais raro. Os dias começaram a ser passados no quarto e os jogos passaram a ser a única ocupação. Amigos, namoradas e família passaram para segundo plano e o tempo para a escola também começou a ser cada vez menos, o que lhe valeu dois chumbos. As noites eram pouco ou mal dormidas. “Começou a jogar a noite toda e a ter os horários trocados, dormia com o computador ligado. Alterou a vida toda à conta do jogo”, contou o pai de António ao HM.

De manhã dormia. As refeições eram quando a mãe aparecia para as preparar e pôr na mesa. Caso os pais estivessem a trabalhar fora, ficava sem comer. “Alimentava-se quando as pessoas lá em casa lhe davam comida e muitas refeições ficavam para trás”, acrescentou o pai.

As chamadas telefónicas muitas vezes ficavam por atender porque o jogo não podia ser interrompido. “Eles jogam online em equipas que dependem uns dos outros e estão a jogar ao mesmo tempo, e ás vezes queria falar com ele e não podia”, explicou o pai.

No computador faziam-se os amigos e a vida social existia entre cognomes e aventuras comuns. Lá fora, na rua não havia nada de interessante.

Ao contrário de colegas que também jogam mas que não deixaram de fazer outras coisas, como “sair, ir ao cinema, estar com amigos”, exemplifica o progenitor, António personifica os sintomas que a Organização Mundial de Saúde, no início do ano, classificou como integrantes de um novo distúrbio mental, a dependência de jogos. A patologia consta agora do manual da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, CID-11, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Em Macau, não há pesquisa a incidência da dependência e das suas consequências, mas a consideração dentro do espectro clinico é vista com bons olhos até por quem vive desta actividade.

Prevenção interna

Para Frederico Susano, membro da direcção da “Grow uP eSports”, a organização multinacional de jogos electrónicos com sede em Macau e Portugal, a incorporação da dependência de videojogos na CID-11 é “absolutamente justificável, até porque tudo o que é em excesso tem as suas consequências”, referiu ao HM.

É por isso que a organização também se empenha em iniciativas de prevenção da adição. “Para já, temos feito mais coisas em Portugal com a realização de vários workshops, conduzidos por profissionais de áreas diferentes para sensibilizar pais e jogadores, alguns mesmo que já jogam a nível profissional, para terem certos cuidados”.

Descanso, horas de sono e mesmo lições de nutrição fazem parte dos conteúdos partilhados nestas actividades com pais e jogadores. “Em causa está a garantia de que quem joga tem o tempo de descanso necessário diário, que tem uma alimentação conveniente e que mantem a saúde. Mesmo para quem joga, a nível profissional ou não, é necessário um certo regime que tem de ser saudável”, disse.

Para Frederico Susano, apesar do videojogo funcionar essencialmente a nível psicológico e não precisar de esforço físico, é necessário cuidar do corpo.

Além dos cuidados com a saúde física, a “Grow uP eSports”, promove ainda alerta e apoio para outras actividades que, entretanto, acontecem online. A título de exemplo, Susano refere o bullying virtual.

Benefícios colaterais

Se por um lado os videojogos em excesso podem trazer isolamento e a interrupção da vida funcional, por outro podem também ser uma ajuda no tratamento de certos síndromas sociais e mesmo no desenvolvimento de funções cognitivas. “Existem diversos estudos a esse respeito e que mostram a eficácia dos videojogos em termos terapêuticos”, avança. Além disso, Frederico Susano acrescenta que “está provado que os videojogos também facilitam o desenvolvimento de determinadas capacidades, nomeadamente a capacidade de concentração”. O também jogador explica que “o foco de um “gamer” [expressão utilizada pelos jogadores de videojogos] casual acaba por ser muito superior do de pessoas que tenham outro tipo de actividades, porque o cérebro durante o jogo está a receber muita informação que exige rapidez a filtrar essa informação sem perder a concentração e o objectivo”.

No que respeita às capacidades sociais, os jogos virtuais também ajudam no contacto com outras pessoas de diferentes partes do mundo, aprofundando competências linguísticas e outros benefícios, considera o dirigente da “Grow uP eSports”.

A história de Frederico Susano foi particularmente influenciada por esta realidade. Foi um jogo que o trouxe à China e que o levou a licenciar-se em tradução e interpretação de mandarim/português. “Este gosto pelo oriente foi desencadeado por um jogo, que falava dos três reinos, uma história chinesa. A maneira como era fiel à história deixou-me curioso para perceber a cultura, quem eram estes heróis. Fui estudar chinês e agora estou cá”, conta.

Sem problemas

“Há jogos que valem a pena que se viva para eles”. Esta é a opinião de Rui Pita. A qualidade, os desafios que impõem, o raciocínio e a destreza mental que exigem são factores que têm feito com que o designer gráfico viva intermitentemente entre períodos em que joga quase sem parar e outros em que não joga, como actualmente.

Para Rui Pita “estas coisas dos jogos já tem uns anos”, confessa. “Penso que já foram bem mais problemáticas do que aquilo que são”, diz recordando que cresceu em salas de jogo e que “o momento mais feliz da vida” foi quando teve o seu primeiro Spectrum.

Mais tarde comprou um PC e descobriu os RPG (Role-Playing Game), “um outro mundo que não tem fim”, diz.

Para Rui Pita, que tem hoje 44 anos, o jogo é mais do que um hobby, é uma presença diária. A caminho do trabalho levava dezenas de páginas impressas, tiradas de fóruns online, com explicações para os jogos do momento.

Os prazos para cumprir missões faziam com que a vida tivesse de ser programada. “Tínhamos, por exemplo, uma semana para chegar a determinado lugar. Isto implicava um trabalho de equipa em que ninguém podia faltar e se faltasse uma pessoa já não se conseguia. O resultado, [quando se joga em equipa], é que todos dependem de todos e cria-se uma espécie de elite em que se sabe com quem se pode contar”, explica ao HM.

Mas Rui Pita nunca deixou de trabalhar, nem de sair ou ir a festas. Mesmo nos períodos em que só pensava e falava em jogos, os amigos continuaram a existir. Por isso, refere sem dúvidas, que “jogar, na realidade não é um vício”. Aliás, no seu caso pessoal e tendo em conta que neste momento praticamente não joga, os tempos que passou a faze-lo são recordações que não vai esquecer. “Mesmo não jogando estou sempre a pensar no jogo, até porque faz parte de uma fase muito boa da minha vida”, revela.

Para ilustrar esta “idade de ouro”, Rui recorda uma altura em que jogava Lineage: “Foram uns três anos em que não tinha outro assunto de conversa. Estava sempre com o jogo na cabeça. Costumava parar num café com amigos e tínhamos um manual, com cerca de 3000 páginas, com a descrição dos bichos do jogo e com o que tínhamos de explorar”, recorda.

Por outro lado, e visto ter feitos amigos também dentro do ecrã, Rui considera que “estes jogos são uma forma de pôr os miúdos a socializar”, até porque, “amigos existem sempre e se uma pessoa se fecha em casa a jogar pode ter outro problema de fundo que deve ser resolvido.” Nesse sentido, “o escape do jogo pode ser bom e uma forma de crescer de outra maneira”, refere.

Diagnósticos paralelos

A classificação da dependência de videojogos no manual de diagnóstico psiquiátrico é bem vista pela psicóloga Nadia Chan, que aponta que o condicionamento da vida pelos jogos muitas vezes traduz a presença de outros problemas. “Se uma pessoa sofre deste tipo de desordem, enquanto profissionais, temos de estar atentos a muitas outras coisas”, começa por dizer ao HM.

Em causa, considera, “podem estar subjacentes quadros clínicos que apontem para a depressão ou transtornos de ansiedade”, pelo que “para perceber o que se está a passar realmente é necessário ter acompanhamento clínico”.

Ainda assim, a psicóloga sublinha que a adição a videojogos é um comportamento problemático que suscita a necessidade de mais investigação, nomeadamente no contexto de Macau.

Entretanto, é preciso prevenir, diz, admitindo que se trata de uma situação que não é fácil de resolver. Os pais actualmente não podem privar o acesso dos filhos à tecnologia até porque as actividades que se fazem hoje têm todas alguma ligação com o mudo digital. “Combinar encontros sociais é através da internet, fazer trabalhos de casa também, e por aí fora”, acrescenta.

No entanto, cabe aos adultos questionaram se o seu comportamento enquanto pais são exemplo para os seus filhos, especialmente no uso da tecnologia. “Muitas vezes os pais são os primeiros a proibir o uso do telefone, mas será que também deixam os seus dispositivos para passar tempo com os filhos?”, questiona retoricamente.

Para a psicóloga é importante que estas coisas se equilibrem e que os pais disponham de mais tempo para estar com as suas crianças.

“A questão não se é o fácil acesso à tecnologia é bom ou mau, mas a forma e o tempo como a utilizamos”, refere.

Quanto a medidas preventivas, a psicóloga é clara sublinhando que são medidas não só aplicáveis aos problemas relacionados com os videojogos mas com todo um espectro que interfere com a saúde mental.

“Em primeiro lugar deve existir uma maior promoção da saúde mental e do que lhe diz respeito em todas as vertentes. Não só com problemas mentais já considerados mas na ajuda a dificuldades do dia-a-dia e que precisam de solução ou alívio que deve ser feito tanto a nível familiar como comunitário.”

Por outro lado, tanto os pais como as escolas deveriam informar sobre o uso apropriado e equilibrado da tecnologia. “A solução não passa pelo evitar a tecnologia, mas pelo acompanhamento da exposição dos mais novos a isso”, remata.

Atentos mas sem dados

Em Macau a dependência de jovens à internet e aos videojogos é colocada no mesmo saco. É de referir que o assunto é acompanhado pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude ainda que de uma forma formativa.

Neste sentido, e de acordo com a informação fornecida pelos serviços ao HM, os currículos escolares incluem disciplinas sobre o bom uso da internet e cibersegurança de modo promover “a compreensão de matérias ligadas aos perigos dos jogos online para a saúde física e mental”.

No que respeita a acções de formação, a DSEJ destaca que existe um departamento para o aconselhamento individual de estudantes com problemas de dependência da internet de modo “a que reconstruam a sua vida normal”, lê-se.

No ano lectivo de 2016/102017, as acções de formação promovidas pela DSEJ chegaram a mais de 185 mil estudantes. Quanto ao número de casos detectados ou pedidos de ajuda respondidos, a DSEJ não especificou.

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