Derivas na língua

09/08/18

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] esquerda, na frente, as violetas, os violinos e os oboés; depois, acima, por detrás das violetas e dos violinos: a harpa, de viés, para que as cordas vibrem impelindo o ar na direcção do leitor. Atrás dos oboés: as trompas. Na frente, à direita: as flautas, os violoncelos, o contrabaixo. Atrás do violoncelista, na segunda fila: o fagote. Na terceira fila: o clarinete baixo e o contrafagote. Na quarta fila situam-se os trombones. Ao centro, à frente: o primeiro e o segundo corne; de ambos dos lados destes: à esquerda o piano de cauda sem tampo e, à direita, o baixo de tuba. Por trás do piano, de viés, o harmónium. E simetricamente, atrás da tuba: o órgão eléctrico. No fundo, ao centro, da esquerda para a direita: as precursões, as congas, a marimba. Ao corno di bassetto solista e aos dois clarinetes pendurei-os nos candelabros.

O catarro do violoncelista precede o silêncio absoluto.

Depois, eu, o maestro, à frente da orquestra, que amacio com a língua (bendito o dia em que lancetei o freio) os mais pilosos segredos da tua orquídea, ergo as batutas.

Inicia-se o concerto.

O leitor sorri, com a orelha encharcada.

11/08/18

Stockhausen, no livro de entrevistas com Mya Tannenbaum, fala da complexidade crescente da tarefa artesanal de compor e defende que o diálogo com um aprendiz, um assistente, pode ser útil para ambos. Depois refere os 4 assistentes que teve. E pergunta Mya: «Christ era, por assim dizer, o seu delfim. Que é feito dele?» Responde o músico: «Foi para mim um choque: reduziu-se a tocar como primeiro violetista na orquestra de música ligeira de Westdeutscher Rundfunk.»

Cheguei tarde aos (meus) mestres. Mas uma coisa aprendi com eles: não se pode ensinar aonde colocar os pés num terreno que não pareça minado, o risco é próprio e intransmissível. Do mesmo modo que ninguém consegue deslocar o lugar da sua morte, ninguém aproveita coisa alguma coisa ao tornar-se o velcro do seu mestre. Por isso diziam os budistas: se encontrares Buda, mata-o!

A escolha da música ligeira só traduz o tremendo susto que floresceu no caminho de Christ.

12/08/18

Ando insone. As palavras chegam-me como um coro fora de cena.

Durante décadas não reconhecia a depressão. Agora morde-me as canelas, enfia-se-me no sono, tem a odiosa gordura que acumulava o linóleo das mesas da minha infância. É um volume que insiste em ser carregado, sem conseguirmos corrigir o erro contínuo de avaliação da energia a despender, vítimas de um conceito mecânico de força.

Basta um homem para remover a grande pedra e empurrá-la colina acima, o mais difícil a acreditar em Sísifo é, num momento de distracção, não deixá-la rolar encosta abaixo.

Hoje até a insónia me parece um feixe dissipado, o cacto enterrado na duna pela tempestade de areia e que perdeu de vista a águia.

As esculturas gregas decapitadas, com o pénis cortado e as órbitas vazadas? Meia vida é assim, amorfa, conformada; sendo o fazer e o desfazer o domínio dos olhos que querem crer.

Paracelso disse tudo: a mente é quem faz ver os olhos.

E, entretanto, não fodemos tanto quanto seria desejável e o amor é sempre um carrinho de mão a equilibrar-se na corda do funambulo.

O acto criativo é que nos compensa, porque o que conta aí não é tanto produzir uma variante na bagagem preexistente como aderir ao processo originário da invenção. Aceder ao incriado, onde todas as possibilidades estão em aberto. E aí, num dia bom eu estendo telescopicamente o braço e apalpo as estrelas, sondo quais estão maduras (- aqui para nós, o rabo das estrelas é tão grande que se pode lá entrar como num celeiro). Diria o Rilke que não existe mais nobre ofício, porque não sou eu quem vai colher o fruto, eu só o testo e farejo.

Em dia assim chego a casa e o amor exorbita. É um puro acto de contaminação.

Em dia infértil, rezingo o suficiente para o próximo milénio, chego a casa e afio as facas na pedra que era do meu avô amolador, reajo por reflexos condicionados.

A incubação dos deuses teve também por fito acomodar-nos a algum modelo de constância. Porém, o corpo é uma espécie de arco que nos ejecta para vicissitudes realmente labirínticas. E o facto de nos empenharmos não garante automaticamente uma satisfação. Há lotarias para o sexo e outras para o amor, não é raro que coincidam, mas é inescapável que amiúde um é o estorvo do outro.

13/08/18

Excelente, a crónica do Paulo José Miranda sobre como o tempo se transforma quando se deixa de beber.

Como alcoólico sempre me penalizou que ao tempo lento da ebriedade se sucedesse a calcinação do tempo nas ressacas. Mas o meu prazer era físico, não psicológico, e, será uma das coisas que me atraía no álcool, há um certo cansaço que despoja.

Nunca estive sem beber o tempo suficiente para sentir a mudança. Mas quando cheguei a Moçambique senti fisicamente essa dilatação do tempo de que fala o Paulo – durante seis meses vivi, literalmente, noutra região do tempo.

Há realmente modulações do tempo e para as sentirmos não podemos cilindrar as suas hipóteses de serem percepcionadas. O álcool é uma antena ludibriadora e ao fim de algum tempo apodera-se do foco, sendo o mais pretexto para a sua anestésica litania. Pior, as intensidades anulam-se e confunde-se a exaltação na presença com a amizade.

Nos últimos anos aderi ao valor do não e do silêncio quando o álcool me chama. O que me permitiu disciplinar-me e recuperar o prazer de beber, embora o mais difícil tenha sido romper com toda uma mitologia incarnada.

O que é facto é que o álcool não acrescenta um grama de atenção ou qualquer microfone a catorze violinos que possamos ouvir ao natural. Apesar de termos acreditado nisso durante décadas, com as tripas. Afinal, ouvir o tempo manifestar-se nas coisas dobra-nos o tempo: triste é ter percebido isto tarde.

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