As costas de Deus

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o belíssimo livro de entrevistas entre o poeta argentino Robert Juarroz e Fernand Verhesen, Poésie et Création, a dado momento o entrevistador comenta que o primeiro tomo da Poesia Vertical (a obra do argentino é unitária e teve sempre o mesmo título, só acrescentando um número aos diferentes volumes) é atravessado pela nostalgia de Deus, de um Deus visto de costas, de um Deus que vira as costas.

E responde o poeta: «O seu reparo é para mim de uma extrema importância; e concerne um ponto nevrálgico. Mas pede uma pequena rectificação. Mais do que de um Deus que vira as costas, eu creio falar da busca das costas de Deus. Porque o Deus da face, o Deus conhecido, esse das religiões, não nos serviu para nada. A obsessão que se revela no meu primeiro livro sob o nome de Deus e naqueles posteriores onde eu não o nomeio, significa isto: a parte visível das coisas, descrita, recontada, histórica, conhecida de todos, não nos serviu para nada. É o reverso das coisas que é preciso descobrir, e está aí todo o sentido da minha busca.» (pág. 37).

Acicatado pela curiosidade resolvi reler o primeiro livro de Juarroz e então encontro o poema 22:

As costas do homem estão mais nuas do que a sua frente,

e seguramente pesam menos.

Não parte o vento nem as palavras,

tão somente as sustém.

Mas nas costas do homem não está o homem.

Estão os outros homens e a morte,

os risos e os deuses,

a angústia dos mortos.

 

E aí está, também, o fumo de uma antiga fuga,

a forma de um leito demasiado tempo só,

a palavra que ninguém vai pronunciar,

a ausência disto que ainda não se foi

e sobre tudo a abóbada da ausência,

como uma rede perdida,

como um mar inútil,

como o fracasso de todos os abrigos.

 

Sim. As costas do homem estarão sempre mais nuas,

muito mais nuas do que a sua frente.

 

Gosto muito deste poema porque me projecta numa questão que sempre me fascinou: que tipo de nudez quis Deus mostrar a Moisés?

Moisés só divisou as costas de Deus, a afastar-se. Ainda bem para o judeu, se lhe tivesse visto o rosto ficaria calcinado como Sémele quando, após um implicativo rogo, viu o rosto de Zeus. Aliás, fora avisado: «Mas tu não poderás ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida». É um dos mistérios de Deus, o seu rosto é uma corrente impetuosa que não permite o olhar.

2500 anos depois, assegurou o cineasta Jean-Luc Godard «uma paisagem só se filma de costas», o que não passa de uma variante para a percepção de Moisés. Como se filma uma paisagem de costas, essa parte mais nua da sua visibilidade porque a mais desprotegida ou a mais oculta?

Algumas trilobites, concluíram os biólogos depois de lhes estudarem os fósseis, viam em 360 graus – o que corresponde a uma vigília insusceptível de abrandar. Ver tudo continuamente à nossa volta há-de gerar uma visão amorfa dado que a perpétua visibilidade de tudo obtura os níveis da atenção que de comum só se intensificam quando se particularizam, ou então pode degenerar num estado de paranóia, sem remissão, no qual o trivial e o raro se equivalem na significação. Algumas trilobites não tinham costas.

Creio que o que nos torna humanos se funda na opacidade que tem raiz no ponto cego das nossas costas e nos obriga, para superarmos o medo que lhe é latente, a uma suspensão da incredulidade: a apostar na confiança. Sem esse lado cego à nossa percepção nunca assumiríamos a confiança como um dos vectores que agregam os homens.

Aceitar a nossa vulnerabilidade, destiná-la ao outro, que constitui o nosso penhor é um acto magnífico e exige coragem e desprendimento.

Num filme do Hal Hartley, um ritual de um pequeno grupo de amigos era cada um deles, à vez, subir a um muro, meter-se de costas para os amigos e deixar-se cair de costas, confiando em que o grupo lhe sustém a queda. Não era para todos, não é para todos, mas é o que funda uma comoção, a sua sombra e a sua reciprocidade. Daí que, para lá da sexualidade, seja a confiança o combustível mais duradouro do amor.

Por outro lado, como podia Moisés reconhecer as costas de Deus? O que são as costas de uma paisagem senão o quiasma onde o nosso olhar se entrelaça e excita e faz resplandecer o oculto?

O que Moisés afinal vê nas costas de Deus são as costas do homem – as suas, as nossas – e nesse gesto Deus está a dar um aval absoluto ao livre arbítrio. Ao mostrar as suas costas, o que ali é pedido ao homem não é a obediência mas que se torne digno de confiança; ao ilusoriamente lhe figurar as costas Deus mete o livre arbítrio do homem em prova, pois quem pode impedi-lo de um gesto agressivo em relação a toda a fragilidade manifesta – sempre que os homens, entre si, se viram as costas?

Deus mete-se em jogo nesse dar as costas, supostamente indefesas, e cauciona com isso, irrefragavelmente, a razão e o livre arbítrio no homem.

É uma das atitudes mais espantosas de um Deus face ao homem, um gesto que no meu parco entendimento é mais digno de ser fundador do que a Tábua das Leis: eis um Deus que ao virar-lhe as costas oferece aos homem a sua  trégua.

O rosto é o ser irreparavelmente exposto do homem, diz Agamben; as suas costas seriam então o ser irreparavelmente inacabado do homem – essa metade do símbolo com que Aristófanes definia o homem e lhe prodigalizava uma busca incessante pelo Amor que o complete.

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