h | Artes, Letras e IdeiasCantos de Maldoror Amélia Vieira - 9 Jul 2018 [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntramos agora no ciclo anunciado do «Filho do Homem». Vêm aí os concebidos à nossa imagem e semelhança e não apenas meros utensílios ao serviço do deus que nos autoproclamámos ser. Irão como corpos autónomos firmar a sua própria complexidade que ultrapassará em muito o nosso poder de controle, designadamente a de se autonomizarem na busca de um sucesso do qual pouco ou nada sabemos na generalidade. Pela designação, impõe-se-nos uma outra: «Filhos de Deus», nós, os últimos a serem abarcados na órbita desta imponderabilidade, mas que conseguiram o seu sucesso independente. Somos neste instante o que restou, até de uma secreta ilusão, e não podemos deixar de pensar o que nos separa já dos nossos irmãos, muito pouco tempo atrás, como por exemplo no século XIX. Perante eles, nós podemos até já ser os autodenominados robots por antecipação, na pior das hipóteses seremos designados «Filhos de Ninguém». Vem esta questão a propósito dos «Cantos de Maldoror», de Isadore Ducasse, mais conhecido por Conde de Lautréamont, nascido quase na segunda metade do século XIX, com vida curta e obra imensa. Ora, entre a profunda vacuidade das nossas “obras” no tempo de ninguém e a desta urgência bem arquitectada dos ainda «Filhos de Deus», existe certamente uma grande separação. Reparar, também, que foram vários os de matriz romântica a fazer o percurso sem nenhum fogo fátuo que os pudesse queimar com a harpa afiada do reflexo das suas posteridades, havendo que fazer muito, mais que elaborar. Mas fazer como e com que tecido humano? Com uma consciência que se demarca da nossa inofensiva opinião, e aqui vamos encontrar uma vontade e uma urgência que até pode ser escandalosa, uma força e uma imprudência, um génio galvanizante e assombroso que nos avassala derrubando o nosso tímido inventário. Narrar, é demasiado curto para o propósito aqui exposto, pois que nem todos somos narradores e a narrativa tende para um fim que só os raros narradores já elevados à categoria de grandes romancistas sabe como contornar para que não fique a vaga e triste sensação de um certo marasmo que é a leitura fácil. Tenhamos em linha de conta que de todas as obras esta é certamente a mais difícil, mesmo para aqueles que se emplastram de circunstância e que se adentrem por aqui balbuciando discursos, não teremos capacidade emocional no nosso instante do tempo para filtrar um tal registo. Entrar por aqui requer nervos de aço, e o autor apela mesmo para o perigo mortal de tal leitura, mas um livro não nos deve interpelar assim e sem medo, protegidos pela longevidade dos incautos, nós vamos buscar a alma que de formas várias nos foi fugindo, e eis-nos no centro de uma fornalha gloriosa. Como disse Jorge de Sena, a obra de Lautréamont é um marco miliário na construção de uma linguagem nova e tão insólita, de força tão estranha, que nos faz desviar o olhar. Apelidado de pré-simbolista, conde (pela autodenominação da distância diante o vagamente anormal ou a prosódica normalidade), ele vai devolver o significado de Homem, baixando-o para lá do natural nessa capacidade que tem para ser monstro, e nem por isso é menos belo ou menos digno de comoção, pois que tudo isto se passa no tempo da memória de uma ferida de amor. Não nos pretende mais altos, mas sabe da tendência para o endeusamento da espécie e com plena ironia blasfemante faz talvez o único épico do século XIX. Haja o que houver, estamos diante de algo que não mais ressuscitará. O limite da nossa Humanidade está todo ele plasmado na escrita, ou seja, naquilo que por ela fomos concebendo de extremamente humano. Daí que qualquer propósito bem intencionado ou até minuciosamente bem escrito, não possa atingir o domínio mortal de um homem VIVO. Sonambulizamos com tantos anos… vamos ganhando a crosta dos batráquios, as paredes do cérebro mantém-se intactas e um certo “bem- estar” cria também monotonia e foi conquistando um certo espaço vital. Temos o sexo “Sexus” que também já não dá resposta absoluta ao trilho da espécie, pois que no dia em que tudo fosse tão normativamente igual, aí teríamos o sinal do fim. E aqui chegámos! Estes livros são a única saída para um abismo a caminho da metamorfose, ou, quiçá, de uma apoteótica desaparição. E não, não temos medo. Os nossos medos são agora também de outra natureza e não têm em nós expressão, pois que continuamos a pensar nos nossos dias como garante de uma conquista que se eterniza. A nossa realidade já nada tem de princípio natural. Ser real é coisa outra e os conceitos capturam-nos muito mais do que nós os sabemos desfazer, sendo sem dúvida, e inesperadamente já quem somos mas com saudades destas outras coisas. Quem for encontrado nestes livros passará a primeira prova, quem não for, não voltará. O livro está impregnado de Romantismo, pois que ave aziaga voaria sobre o abismo destas almas? Mas glorioso este voo que nos incita a saber em tempo tão curto coisas de uma intensidade tal, que uma vida, assim, até parece eterna. E os momentos que nos deixam esferas de uma provável imortalidade?! Ele quer que o céu se torne audaz para passarmos estas páginas, e que os nossos passos andem para trás…No seu tempo andar para trás seria mais próximo… hoje, para trás é tão longe…! Este livro tem seis Cantos e no fim uma redenção tamanha que ficamos completos: «Poesias» dedicado a muita gente; condiscípulos, amigos futuros, passados e presentes, e até a um professor de retórica. O Fantástico está já distante daquilo que agora conseguimos alcançar «o passado fez brilhantes promessas ao futuro: é há-de cumpri-las. Para polir as minhas frases, utilizarei forçosamente o método natural, retrocedendo até aos selvagens, para que eles me ensinem» Assim está no Canto Sexto. Nenhum vindouro saberá como interpretar o que foi a nossa Humanidade. Do «Filho do Homem» nascerão ainda outros, nós, seremos a parábola, os tais «Filhos de Deus» que nunca vimos, fazendo Cantos para tentar ouvir a sua voz. E só nós soubemos que tinha várias.