Vingança               

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ingança, uma palavra forte. O próprio som da palavra dá a entender sangue, violência, tiros, cabeças cortadas, espadas atravessadas do abdómen às costas. Reparem na intensidade das palavras da família de “vingança”: vingativo, vingador, vingado. Convidam à poesia. É preciso não confundir a vingança com outras mariquices. Um tipo que dá um murro a outro que lhe bateu primeiro é uma simples retaliação. O indivíduo que atropela com o carro o filho mais novo do vizinho e lhe parte as pernas porque o outro lhe matou o gato é um ajuste de contas.

O gajo que denuncia às autoridades a plantação de “cannabis” do vizinho porque este teima em receber visitas e ficar a ouvir Bob Marley toda a noite é um “queixinhas”. O fulano que fura os pneus do carro do colega depois deste ter contado ao chefe que andava a roubar lapiseiras do escritório é uma “vingançazinha”, nem chega a ser vingança, e dificilmente o castigo corresponde ao crime – não chega para se ficar vingado.

Vingança que é vingança implica um longo período de angústia, de dor, de humilhação, seguido de outro não menos longo período de recuperação, planejamento e preparação ao nível do corpo e da mente. Quem planeia uma vingança nunca o faz para daqui a pouco, para amanhã ou dentro de semanas. É um processo que pode demorar meses, anos, toda a vida, e pode mesmo nunca chegar a ser realizado. É um peso que se carrega no peito, que nos assalta a cada minuto, a última coisa em que pensamos quando vamos dormir e a primeira quando acordamos. Dizer que se tem “sede de vingança” diz muito pouco sobre o que é realmente a vingança. Devia dizer-se “ter dores de dentes de vingança”.

O cenário típico de vingança é aquele que apreendemos dos filmes de acção, Imaginemos o Mesquita, um cidadão médio a quem a vida corre bem, casado e com dois filhos lindos, uma menina adolescente e um rapaz de dez anos. Um belo dia estão em casa a viver as suas vidas de família como outra qualquer, e são assaltados por um gangue de seis ou sete indivíduos, que lhe violam a mulher e lhe cortam a garganta, rebentam os miolos ao miúdo e raptam a filha, vendendo-a posteriormente à escravatura sexual. Mesquita tenta resistir, mas entre um tiro numa perna, duas ou três facadas nas costelas e a mesa de vidro da sala despaçada na tola, é deixado à beira da morte. Quando chega a polícia, muito depois dos bandidos se terem posto em fuga, encontra-o num estado lastimável, com o rosto feito numa papa Nestum.

Segue-se um longo período de recuperação para o Mesquita, com a imagem da violência a que foi sujeito gravado na retina. Já em plena forma, aprende uma arte marcial ou compra uma arma de grande calibre, e depois de saber para quem trabalham os assaltantes, e para quem trabalham estes, e finalmente para quem trabalham todos estes, chega ao topo da hierarquia, a um tal sr. X. Este sr. X é um respeitável elemento da sociedade, o mais generoso contribuente do último peditório para o combate à paralisia infantil, e principal patrocinador da reeleição do presidente da câmara. Apesar do seu aspecto diabólico e fortuna de origem duvidosa, normalmente obtida através do tráfico de droga ou de pessoas e complementado pela fuga ao fisco, é respeitado por todos os cidadãos da comunidade, e está acima de qualquer suspeita.

Depois de limpar o sebo a 40 ou 50 capangas do sr. X com muito má pontaria e pouco jeito para a porrada, com o grau de dificuldade a aumentar à medida que vai chegando ao seu objectivo, Mesquita chega finalmente ao tão desejado face-a-face com a sua nemesis. Depois de um diálogo completamente desnecessário, onde cada um deles podia ter aproveitado o tempo para matar o outro, dá-se o confronto final, e depois de um combate equilibrado mas com uma inclinação para o vitória do sr. X, Mesquita parece derrotado. Quando o seu inimigo se prepara para desferir o golpe final, dá-se um volte-face, Mesquita reúne o que lhe resta das forças e derrota o sr. X, que tem uma morte horrível e poética, de preferência acrescentada de uma “punch-frase” a condizer.

Já todos assistimos a filmes com um argumento mais ou menos semelhante a este, e até conseguimos imaginar Bruce Willis ou Mel Gibson no papel de Mesquita, e Kevin Spacey ou Gary Oldman no papel de sr. X. A TDM tem exibido nos últimos meses a novela portuguesa “Vingança” – o título diz tudo – e nela temos Diogo Morgado no papel de vingativo e Nicolau Breyner como o objecto da sua vingança.

O personagem de Diogo Morgado viu o pai ser morto a mando do personagem de Breyner, e ele próprio foi traído pelo filho deste, que o deixou dado como morto, a apodrecer numa prisão marroquina. A vingança é um dos ingredientes mais amargos da composição do género humano, uma comichão que só se alivia quando a vingança é finalmente concretizada. Só há uma coisa que me deixa incrédulo quando assisto aos filmes ou outras obras de ficção que falam de uma vingança. Quando alguém como o dr. X, com esqueletos no armário, fica finalmente face-a-face com o seu vingador, neste caso o Mesquita, diz sempre: “Mesquita…finalmente…estava à tua espera”. Estava à espera? Não acredito. No mundo real, o sr. X ficaria borrado de medo, isso sim.

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